Água Turva, 272 páginas, é da Cia. das Letras
O título do livro vem do Parque Estadual do Turvo, no RS, que realmente existe e é onde se passa a história. É nesse parque que trabalha a jovem Chaya, como guarda florestal. O primeiro capítulo já a estabelece como corajosa e durona. Ela vai se opor à construção de um hidrelétrica na região, patrocinada por um deputado estadual chamado Heichma, cuja assistente, Olga, também é nascida na região do Turvo.
Outra personagem importante é Preta, prima de Chaya que controla com mão de ferro uma pequena comunidade silvícola (“quinze casas”) nas imediações do parque. É praticamente uma ditadora do local:
Uma menina de cinco anos tira um pedaço de rim da boca e joga fora. Dois cachorros correm para pegar o miúdo e, por causa ele, brigam. Preta se levanta, vai até a criança e lhe dá um tapa na boca. O prato da menina voa longe. Os cachorros correm e devoram os restos.
— Diabo! Agora vai passar fome!
Todos olham para Preta, em seguida abaixam a cabeça, mudos. A criança engole o choro.
Chaya e Preta são bisnetas de um sujeito de sobrenome Sarampião, que também era guarda florestal. Sua história é envolta em lenda, ele morreu misteriosamente e se tornou uma espécie de entidade sobrenatural protetora do parque. Ora sua presença parece associada a um vento, ora a uma onça, e há até uma espécie de oração que é feita a ele. O livro também conta a história dos descendentes de Sarampião, que é cheia de violência e ódio e se estende desde os anos cinquenta até hoje.
Olga decide que vai tornar públicas as tramóias do deputado, relacionadas ao projeto da hidrelétrica. Para isso, rouba documentos do gabinete dele, e vai até a região do Turvo para fazer mais investigações, pois o deputado também está envolvido em um esquema enrolado de contrabando de carne silvestre e vinhos argentinos. Mas ela não é bem vinda lá, porque quando adolescente colocou fogo na estátua do respeitado Sarampião, que adorna a praça central da cidadezinha.
Preta e Chaya se odeiam, e as duas odeiam Olga. Esse triângulo faz girar a história principal, passada nos dias atuais, que é construída na forma de um thriller, com fugas, perseguições, ameaças, investigações, etc. Já a história secundária faz o tipo saga familiar, com rivalidades entre irmãos, segredos, vinganças e tal. A primeira não se furta a ser uma aventura com bandidos e mocinhos, enquanto a outra já admite um pouco mais de indefinição moral.
Morgana Kretzmann escreve bem, cria bons personagens, tem um texto fluente, bons diálogos e sabe manter a tensão ao longo da narrativa.
Armin retoma a consciência. Está escuro e silencioso. Sente a terra solta e seca entrar na sua boca e nas narinas. Tenta se levantar, mas está grogue. A pancada na cabeça foi violenta. Põe a mão atrás da nuca. Há uma gosma no couro cabeludo. Ele cheira. É sangue.
No nível das frases, dos parágrafos, ela está sempre no controle.
O livro tem duas fraquezas, a meu ver, que não são técnicas mas de concepção.
A primeira é que tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Olga está denunciando o deputado e tentando fazer as pazes com o passado; Chaya está protegendo o parque e lutando contra a hidrelétrica; Preta às voltas com contrabando e o destino de sua comunidade; tudo isso embolado com a saga da família Sarampião, que tem vários personagens e conflitos. O foco da narrativa muda a todo momento, no tempo e no espaço, enquanto a autora luta para manter o interesse do leitor em todo um conjunto de tópicos concorrentes. O resultado é perda de voltagem dramática.
A outra fraqueza é o excesso de boas intenções. O livro por um lado acumula denúncias — contra a corrupção dos políticos, contra o machismo, contra o racismo — e por outro lado acumula defesas — das mulheres, dos pobres, do meio ambiente, dos saberes tradicionais. Os ricos são do mal, os pobres são do bem; o mal é masculino, o bem é feminino. O protagonismo é todo das mulheres que, apesar de seus defeitos, são sempre figuras fortes e íntegras, com arcos ascendentes, enquanto os homens ou são torpes ou covardes ou tolos, com arcos descendentes.
Preta desce o facão até o pescoço dele de novo, agora com a lâmina virada para a pele do homem.
Senna não responde. Seus dentes batem uns nos outros. Seus joelhos tremem. Ele urina nas calças. Preta ri.
— Frouxo!
A autora parece preocupada demais em defender as causas adequadas, em escrever um romance politicamente correto. Aparece até uma recomendação para que se usem máscaras durante a pandemia. Só faltou o aquecimento global e um personagem gay. Ou talvez não, já que isso fica sugerido a respeito de Chaya. Aliás, o fato da (homo)sexualidade de Chaya ser mencionada só de passagem, sem nenhuma exploração verdadeira, sugere que essa questão foi colocada ali só para cumprir tabela.
Não é o primeiro romance que me incomoda pelo bom-mocismo. Uma Dor Perfeita, Ébano Sobre os Canaviais, Solitária, Viúvas de Sal e Bagunça, todos resenhados anteriormente, sofrem do mesmo problema. Comparado a esses, Água Turva é mais bem escrito.
Uma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
Parece que, com raras exceções, os escritores brasileiros estão sem criatividade para criar boas histórias ou só se publica se cumprir um roteiro pré estabelecido pelo mercado editorial
Ando com preguiça do bom-mocismo partidário dessa leva nova de escritores brasileiros. Por isso adorei "A Pediatra", por toda a sua "humanidade", sem essa lustrada de peroba nos personagens. Esse já vou tirar da lista.