Bagunça, 230 páginas, é da Patuá
O poeta Julio fica amigo de um antropólogo dinamarquês chamado Hans, e se incumbe de “mostrar o Brasil” para ele. No primeiro período que passam juntos, passeiam pelo Rio de Janeiro e vão a um ensaio de bateria, onde Hans previsivelmente se encanta por uma mulata, Jurema. Num segundo período, visitam também São Paulo, Salvador e Porto Seguro. Jurema acaba entrando na onda do gringo e se casa com ele; os dois se mudam para o exterior. Por sua vez, Julio também se casa.
O livro se esforça para tentar parecer um romance. Tem personagens, que entabulam diálogos e se deslocam por diferentes cenários. Tem até uma história de amor, mal ajambrada mas tem.
Entretanto, não é um romance. Os personagens não tem profundidade, os dramas humanos são aguados, ficam sugeridos mas não são explorados. O relacionamento de Julio com Manuela, por exemplo, é apresentado com uma superficialidade absurda, vai do encontro ao casamento em questão de minutos, o autor não tem o menor interesse em explorar essa história. Todo o simulacro de ficção é montado para que Marcelo Brandão Mattos apresente ao leitor suas reflexões sobre o Brasil.
Então é um longo ensaio? Traz uma visão inovadora, original, aguçada, com perspectivas interessantes sobre as questões nacionais?
O autor não tem modéstia ao sugerir que é isso mesmo, pelo menos é assim que aparece na boca de um personagem, pois diz Hans a Julio: “Não sei se já lhe confessei, mas observo que serias um belo pesquisador das ciências sociais. Essas suas análises dariam uma fantástica tese de antropologia!”. As tais análises são produzidas pelo autor, naturalmente, e fica claro que é isso que ele pensa a respeito delas, que dariam uma tese fantástica.
Infelizmente, não vejo como concordar. Como ensaio sociológico, o livro deixa muito a desejar. O que ele faz é visitar vários temas em sequência, afirmando sobre cada um deles o absoluto senso comum. Aliás menos até do que o senso comum, afirmando os clichês mais rasos e tolos que se pode imaginar.
O desejo pelo corpo negro não é necessariamente sinal de respeito. E é comum que os estrangeiros tenham um interesse objetificado pelas nossas mulheres.
O desejo por um corpo, seja negro ou não, é algo instintivo e não teria por que ser sinal de respeito. Desejo é uma coisa, respeito é outra (se o desejo vai ou não se consumar, se vai levar a um relacionamento, etc, é outra questão). Os estrangeiros têm interesse objetificado por “nossas” mulheres? E não pelas deles? E nós, não temos esse desejo?
Muitos da comunidade se tornavam soldados do crime organizado. Morriam cedo com armas que mal sabiam manejar, sem exército que lhes desse cobertura, sem comando ou proteção. Muitos afundavam o nariz nas drogas e acabavam por negociar a alma em troca de gramas de pó.
Sim, muito triste a infância no ambiente do crime.
O fato de sermos cariocas na periferia paulistana nos dava uma certa insegurança de adentrar o espaço sem convite. Depois descobrimos que o bairrismo é uma invenção de branco, ninguém ali tem tempo para brigas maiores do que a de sobreviver a cada dia.
Bairrismo é coisa de branco? Tribos indígenas não tinham bairrismo (ou tribalismo, no caso)? Viviam em plena harmonia? E quanto a Hutus e Tutsis? Pessoas com dificuldade para sobreviver não têm tempo para brigar? Será que é isso que a história mostra?
Na entrada da ocupação, Maria Macedo nos aguardava com a altivez característica a todo aquele que luta, sobretudo quando mulher.
Fora o erro de regência, a generalização é tola.
Mais de sessenta por centro das pessoas que compunham o assentamento eram retirantes nordestinos. Depois, já a caminho do aeroporto, tive que responder a Hans se “nordestino era raça”.
Quer dizer que Hans, descrito como um erudito, uma alma sensível, um conhecedor profundo da história do Brasil, perguntou se nordestino era raça? É mesmo? É verossímil isso?
Há ciência entre os índios, estudos que os brancos sempre ignoraram por arrogância e desprezo pela alteridade.
Os brancos sempre sendo malvados.
Havia um fogueira acesa no centro, os índios dançavam ao seu redor, entoando um cântico que celebrava os espíritos da floresta (…) Senti vergonha pelos nossos antepassados que, diante daquela festa, não souberam festejar, pensaram apenas em como vencer aqueles seres cantantes e dançantes. Como pensar em ouro quando o que brilha é a pele da gente?
Celebravam “espíritos da floresta”? Que coisa genérica… Não daria para dizer algo um pouco mais aprofundado? Nossos antepassados eram todos brancos? Índios são seres cantantes e dançantes? Lembrei do Xou da Xuxa… Desconfio que essa visão talvez seja um pouco condescendente… Os índios não pensavam em vencer uns aos outros em suas batalhas?
Tivemos cachorros e plantas, seres que não sentirão na carne as frustrações de estar em um mundo cada vez mais mecanicamente segregado (…) grande parte da sociedade que caminha entre nós, disfarçada na multidão, em quantidade cada mais imprevisível, se tornou insensível à dor alheia, naturalizando o sofrimento humano como parte do que hoje se diz ser “o mérito de cada um”. O homem catando dejetos no lixo da esquina é só “alguém que não venceu”.
Sim, as pessoas recentemente “se tornaram” insensíveis à dor alheia. Deve ser culpa do capitalismo. Antigamente (antes dos brancos inventarem o bairrismo, suponho) eram todos muito empáticos, nunca houve guerras, estupros, sofrimento.
Manu é uma mulher que não pensa em ser mãe, essa ideia não pertence a um imaginário de si mesma. Quanto mais foi amadurecendo, mais entendeu que a imposição social da maternidade não lhe dizia respeito. Ser mãe não faz parte da sua identidade feminina.
Em nenhum momento ouvimos a própria Manu a esse respeito, nem a questão é aprofundada. Não há diálogos de verdade no livro, não há alteridade, para falar a língua do autor, tudo é só pretexto para o falatório de Julio. “Não pertence a um imaginário de si mesma”? Quem fala assim?
Há que se registrar que a depreciação racial advém muito provavelmente de um desgaste simbólico que é fruto de um contato coletivo mais frequente. A história da escravidão se perpetua e deixa ecoar sentidos pretéritos, influenciando dinâmicas sociais no novos tempos. (…) a semântica da diferença se faz em outros rumos.
Como diria Gloria Pires, não posso opinar. Talvez sim, talvez não.
O Nordeste é a nossa última utopia. É onde o progressismo resiste.
Claro, claro. “Nossa” utopia. Pode ficar tranquilo, Marcelo, que leitor nenhum chegou ao final do livro sem perceber o quanto você é comprometido com a causa do progressismo, ou pelo menos com um certo tipo de discurseira progressista. Ticou com sucesso todas as caixinhas. Só não fez literatura. E nem sociologia.
Três machadadas.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)