Barra-dos-Meninos, 260 páginas, é da Litteralux
Barra-dos-Meninos é um vilarejo no interior de Sergipe, próximo à fronteira com a Bahia. Muito pobre, obviamente, sua população vive do que tira da terra e da venda de caranguejos e frutas na beira da rodovia federal que passa ali perto.
O livro acompanha a vida de parte dos moradores, durante algumas semanas.
Temos o bêbado Cascalho; o funcionário público aposentado Liduíno; Manolo, o dono do bar; o transportador Piaba; o pastor Divino e sua esposa, Soledade; Moerekoara, o cacique da tribo indígena vizinha; o velho cego Irineu, cantador de cordel; e outros.
Capítulos curtos se sucedem, apresentando breves momentos dos personagens. Uma ida à feira, uma conversa entre amigos, um momento de reflexão. Assim vai sendo montado uma espécie de mosaico narrativo que tenta mostrar para o leitor como é viver em Barra-dos-Meninos. Não há uma história principal, um grande drama ou evento que constitua um centro de gravidade, mas uma teia de fugazes experiências.
Cascalho se entregara à bebida por remorso pela morte do neto, pela qual se considera culpado. Entretido com o cuidado de um porco, descuidara-se da criança. “Menino morto nunca mais para de morrer, como se sabe. E Cascalho, o avô, morreu junto. Só não deitou para morrer, o homem. Morreu de pé, andando, tropeçando e bebendo cachaça”. Certo dia, ele entra na igreja do pastor Divino e se ajoelha, chorando muito e pedindo perdão. Depois desse dia, converte-se à religião e abandona a bebida, deixando de ser Cascalho e voltando a ser Raimundo.
Pastor Divino se preocupa com as almas do seu rebanho de ovelhas. O inimigo está sempre pronto a aproveitar qualquer brecha que se lhe abra. Seus sermões têm pouco efeito. Mesmo quando denuncia os índios como agentes do mal, a vila se agita momentaneamente mas logo esquece.
O casamento de Liduíno está estagnado, como a própria vida dele. A mulher chegou à menopausa, já não têm convivência nem de dia e nem de noite. Ele acalente um vago sonho de ser o “líder” político da vila, porém nada faz de concreto. Não por acaso, esse ex-funcionário público acha que a “solução” do lugar é virar uma cidade. Quem sabe se ali houver prefeito e vereadores, tudo vai melhorar. O velho cartorialismo, a velha ilusão de que alguma autoridade externa tem que nos ajudar.
A única visita ao vilarejo é de uma acadêmica, Violeta, que quer desenvolver uma coreografia para um espetáculo de dança que seja baseada no movimento dos caranguejos. Ela bebe cerveja, fuma, joga sinuca e não raspa o sovaco; esse estilo de vida inusitado causa certo mal estar entre os moradores.
A presença dessa personagem causa alguns momentos ambíguos no livro. Aqui, ela visita a feira:
Violeta conversou com quem quis conversar, compartilhou silêncios e olhares com quem preferia calar (…) os índios da última barraca armazenavam em barbantes, garrafas e sacolas plásticas parte de seu conhecimento milenar e de sua cultura. Raízes, líquidos, amuletos, olhares, códigos. Violeta concentrava-se nos sentidos para receber em seu espírito tudo o que havia à sua volta (…) E a voz pura, límpida e potente do cego a derramar sobre a vila a indizível poesia de todos os cantos daquele Nordeste incomparável, daquela terra de tanta luta e de tanto sonho.
Essa história de “compartilhar silêncios” é conversa mole. “Conhecimento milenar” é mais conversa mole ainda (e descrito da forma mais vaga possível — “raízes, líquidos”). Como assim, eles armazenavam “olhares” e “códigos” em garrafas plásticas? O que significa concentrar-se nos sentidos? Quais sentidos? Receber em seu “espírito”? E que dizer de “indizível poesia” ou esse sentimentalismo de “tanta luta e tanto sonho”?
Esse tipo de linguagem não tinha aparecido antes. Até esse capítulo, já pelos dois terços do livro, o autor preferia um estilo mais seco e descritivo. Não fica muito claro se é Violeta quem tem essa visão sentimental das coisas ou se a presença dessa personagem só serve de pretexto para que o lado brega do autor aflore.
A conversa de Violeta com Liduíno também surpreende um pouco. Segundo ela, “alguém precisa cuidar disto aqui”, “o povo deste lugar precisa de ajuda (…) tem que ter alguém que defenda este lugar, esta gente”, “tu pode ser o primeiro prefeito”. Violeta acha que o povo precisa de políticos que cuidem dele. Ou então ficam reduzidos a nada. Ela acredita que a vida do povo da vila não tem valor, pois são pouco mais do que animais.
Os homens de Barra-dos-Meninos também eram caranguejos (…) se arrastavam assustados em movimentos laterais, correndo para não serem esmagados (…) Ambos padeciam da mesma doença: sozinhos sob a canícula nordestina e sob o jugo dos poderosos, nada podiam. Restava se arrastar sobre a terra seca à espera de se acabarem os dias.
De novo, não fica claro se Violeta, a personagem mais instruída e cosmopolita (quer fazer mestrado na Europa), expressa essas ideias preconceituosas e tolas como porta-voz do autor ou se Benilson Toniolo a usa para fazer uma caricatura do intelectual brasileiro.
A princípio, a primeira opção parece mais provável. Inclusive, é justo esse trecho que está na contracapa. Porém, é de se notar que essa visão niilista não condiz com o restante do livro. Em nenhum momento o povo da vila parece estar sob o “jugo de poderosos” (conversa mole de novo). Eles levam a vida comum e ordinária de todos os seres humanos que, pobres ou ricos, têm seus amores, seus sonhos, suas preocupações, seus dramas. Não estão apenas se arrastando à espera da morte. Ora, se a vida em Barra-dos-Meninos fosse mesmo assim, não poderia haver livro!
Bem escrito, bem montado, com bons personagens, boas imagens, boa cadência. Mas, pelos momentos de conversa mole, uma machadada.