Cora do Cerrado, 173 páginas, é da AR Publisher
Ao engravidar do namorado Tião, a jovem Cora abandona o curso de Técnico Agrícola para se casar. Os dois então vão morar num casebre nas terras da fazenda da família dele. Sobrevivem comendo o que plantam e com um pouco de dinheiro que Tião ganha fazendo uns bicos em fazendas das região.
Cora não se dá bem com a família do marido, nem mesmo com o próprio. É uma pessoa disposta a encarar dificuldades, mas aquela não é a vida que ela pretendia ter. E agora? Enfrentá-los? Resignar-se? Fugir?
O principal problema é que a autora se esforça demais para nos convencer de que Cora é uma heroína com H maiúsculo, enquanto o mundo é uma dureza com D maiúsculo e as pessoas ao seu redor são más com M maiúsculo.
O irmão de Tião, chamado Toninho é gastão, egoísta, cruel. Faz maldade com animais. A mãe também é muito difícil. Tem dois mil hectares de terra, mas obriga o filho a tirar o sustento de um único hectare, ainda por cima na área do brejo. Não quer nem dar carona para a nora num dia de sol forte. Malvada mesmo. Tião também não é fácil, trata mal o filho de Cora, não aceita pagar alguém para ajudá-la, embolsa o dinheiro da venda dos queijos que ela faz.
É a famosa novela mexicana, em que a mocinha é quase uma santa, seus antagonistas são caricaturas de demônios, e tudo é feito para arrancar uma lágrima do espectador a qualquer custo.
O problema é que Tana Moreano admira Cora além da conta que seria saudável. O autor precisa desprezar um pouco seu protagonista, achá-lo por vezes meio ridículo, senão cai na armadilha de fazer uma história de louvor, com personagens que não têm profundidade (essa é a crítica que eu mais faço por aqui).
A técnica literária também deixa a desejar. Percebe-se que a autora é iniciante.
A narradora-personagem já cuida de trazer para o leitor os fatos devidamente analisados, cabendo a nós apenas aceitar que fulano é assim e que a vida é assado. Seria melhor mostrar mais como as coisas são e deixar o leitor formar sua própria opinião.
Aparecem muito aqueles diálogos que em inglês o pessoal chama de AYKB, As You Know, Bob. É o diálogo em que dois personagens falam sobre um assunto que é de conhecimento de ambos, só porque o autor precisa contar aquilo para o leitor. Tião falando com a mãe: “A senhora sabe que eu, pra completar renda, faço uns serviços de mecânico e eletricista aí em volta pelas outras fazendas.” Ora, se ele mesmo está dizendo que a mãe já sabe…
Quando Cora vai comentar sobre a família do marido: “A caminhonete, mais do que útil, era uma demonstração de opulência. Bastava ver Toninho, o filho mais velho, conduzindo aquilo como uma biga romana”. Mas o que quer dizer isso, conduzir como uma biga romana? Ele dirigia em pé? Será que uma mulher da roça como Cora usaria bigas romanas como referência?
Como metáfora do que a família de Tião faz com Cora, temos o episódio em que alguém mata a lobinha de estimação do filho dela, um animal que tinha “um espírito livre”. Ficou simplório.
Apesar de todas as deficiências, o livro até que prende. O leitor vai se interessando por Cora enquanto ela aprende a fazer queijo, se enturma com as amigas da benzedeira, luta com as cobras (aliás, o melhor trecho do livro é quando ela mata uma cascavel), tem mais um filho e, finalmente, cria coragem para começar uma vida nova.
Enfim. Todo mundo conhece pessoas com histórias de vida incríveis, que “dariam um livro”. Mas para dar mesmo um bom livro é preciso técnica. Construir personagens, montar cenas, bolar enredo, descrever ambientes, introduzir metáforas, jogar com a linguagem, trazer informações para o leitor sem ser didático, tudo isso é bem mais difícil do que parece.
Duas machadadas.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
Caro Décio, só tenho a agradecer sua análise objetiva e observadora. Realmente, sou uma escritora iniciante e vou levar em conta todas as suas observações para continuar me aprimorando. Você faz um grande trabalho a todos nós, escritores. 😊