Em Nome da Imagem, 192 páginas, é da editora 93
Na parte I, em 2015, um fotógrafo de publicidade chamado Edgar relembra o contato que teve, décadas antes, com o fotógrafo de arte Amos Susskind. Desgostoso com suas atuais atividades, decide realizar um documentário sobre Amos. Na parte II, em 1991, acompanhamos Edgar e Amos em um trabalho fotográfico que fazem juntos. Na parte III, de volta a 2015, Edgar vai aos EUA entrevistar Amos para o documentário, e este lhe revela que fez um trabalho secreto. Na parte IV, em 1992, acompanhamos Amos nesse trabalho secreto. Primeiro, ele vai à fronteira com o Paraguai, onde pretende fotografar um cadáver. O plano dá errado e ele então se hospeda na fazenda de um deputado. Lá, faz algumas fotos e participa da caçada a uma onça. Quando um grupo de sem-terra matam grande quantidade de gado da fazenda, os capangas do deputado capturam o líder desse grupo e sua filha e Amos se dedica a registrar tudo enquanto os dois são torturados e mortos, em cena que evoca a crucificação de Cristo. Na parte V, de volta a 2015, Edgar vai até a região da fazenda do deputado atrás dos negativos das fotos da tortura, que depois divulga como se fossem suas.
Schneider traz questões interessantes sobre a ética do jornalismo e da fotografia, a fascinação do ser humano pela imagens e pelos símbolos, as relações de poder que o olhar pode comportar e revelar. A parte IV do livro é intensa, com elevada carga dramática, talvez pudesse funcionar sozinha como um conto.
Virou a cabeça, e viu um boi em pé, que parecia encará-lo fixamente. O animal começou a caminhar em sua direção. Amos virou-se na direção do animal, afastou os pés e estabilizou a postura, posicionando a câmera para enquadrar a fotografia na horizontal. Dois trilhos reluzentes escorriam dos olhos do boi, que parecia chorar a dor de seus semelhantes naquele holocausto bovino. O boi manteve o passo resoluto, sem dar mostras de se desviar de Amos, que saiu da frente e pôde ver o que realmente se passava. O boi não estava chorando. Seus olhos haviam sido vazados, o que pareciam lágrimas era uma mistura de sangue e humor aquoso que escorria das órbitas.
Uma imagem forte, sem dúvida.
O restante do livro opera a uma voltagem bem mais baixa. O que temos é Edgar levando a vida e lidando com seus problemas, que não são lá muito excitantes ou interessantes.
O estilo do autor demonstra, a meu ver, imaturidade (se não me engano, é seu primeiro romance). Recorre a palavreado barroco sem necessidade (zaina, rêmiges, acutância, helanca, esclera) e cria parágrafos tomados por informações técnicas.
Um detalhe bem colocado pode fazer um texto crescer (os trilhos reluzentes nos olhos do boi é um exemplo, ali em cima), mas detalhes irrelevantes aborrecem o leitor. Por exemplo, “Alugou um Ford Fusion”, “Alugaram um Ford Escort”, “alugou um Toyota Corolla”. Que importa qual é o carro?
O papel era do tipo fiber-based. Isso significa que a emulsão dos sais de prata era depositada sobre um revestimento de barita nas fibras do papel, ao contrário dos papéis mais comuns, que eram papéis mais leves imprensados entre duas camadas de filme de polietileno, sobre a qual ia a emulsão, fisicamente separada das fibras de celulose.
Cortou a lingueta da ponta do filme, e colocou-o na bobina, uma espécie de espiral metálica na qual o filme ficava enrolado de maneira espaçada, sem que os giros dela se toquem. Colocou a bobina no tanque, um tubo de metal com uma tampa interna e outra externa, com uma abertura que permitia colocar e escoar os líquidos do processo de revelação, sem expor o negativo à luz. Encheu o tanque com aquela solução repugnante. O revelador convertia os haletos de prata da emulsão em prata metálica.
Trechos enciclopédicos como esses não acrescentam nada ao enredo, nem ao drama, nem ao estilo (quem também sofria desse mal era o velho Rubem Fonseca). Como disse uma vez um escritor que não me lembro mais quem era, tente deixar de fora as partes que os leitores pulam.
O texto precisaria ser trabalhado com mais esmero.
No capitulo XXX, o narrador chama Amos de “Edgar” por duas vezes.
“Pronunciou o ‘r’ com o pronunciado sotaque americano; a consoante saindo como aproximante alveolar. O ‘r’ de Verônica saiu com uma pronúncia acentuadamente alveolar.”
“Mas vamos cuidar de você agora, você não está nada bem. Parece bem machucado. Venha, eu trouxe um médico para cuidar de você.”
“Teobaldo vivia em um ranchinho não muito longe da cidade, uma chácara que visivelmente não seria difícil de encontrar.” Por que “visivelmente”? O personagem está olhando um mapa? “Logo encontraram um sitiozinho” Encontraram? Mas Edgar estava sozinho.
“A razoabilidade da dúvida, tão cara aos advogados, fora expulsa daquelas fotos, enxotada como a um cão sarnento.” Em primeiro lugar, o certo seria “enxotada como um cão sarnento”, não cabe essa preposição “a” ali no meio. Ademais, o símile do cão sarnento é demasiado batido (Nelson Rodrigues já tinha atualizado essa imagem, trocando-a pela da “ratazana prenhe”). Os lugares comuns precisam ser repudiados como repudiamos a um cão sarnento.
Abaixo, um exemplo um pouco mais longo de prosa capenga:
Saíram do estacionamento do pequeno aeroporto, e logo estavam na BR 463, a rodovia pela qual seguiriam viagem até Ponta Porã. Logo estavam viajando, em velocidade constante pela que talvez fosse a estrada mais entediante que Amos já vira. A rodovia seguia por quilômetros e quilômetros sem uma curva, estendendo-se retilínea para além do horizonte. A estrada cortava infindáveis planuras cobertas de plantações de soja, sem quaisquer pontos de referência visíveis em qualquer direção no horizonte. A paisagem conseguia ser mais monótona e homogênea que a das estradas que cortam os desertos do Novo México. Apenas o sol se pondo entregava algum sentido de direção, alguma noção de onde ficava o norte e o sul, o leste e o oeste.
Os dois primeiros períodos têm a expressão “logo estavam”. Em seguida, o autor usa “A estrada” para evitar a repetição de “A rodovia”, só que isso não adianta, é repetição do mesmo jeito (ainda por cima incorre numa inconsistência, afinal rodovias e estradas não são a mesma coisa). Se não tem nenhuma curva, só pode ser retilínea. Não faz sentido acrescentar “no horizonte” à expressão “em qualquer direção”. Ao final temos “direção” de novo, com a especificação desnecessária de que se trata de “norte, sul, leste, oeste”.
O livro tem seus bons momentos, mas tanto o enredo quanto o uso da linguagem deixam a desejar. Duas machadadas.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)