Feérico Luar no Copacabana Palace, 345 páginas, é da Danúbio
“Feérico luar no Copacabana Palace esta noite” é a primeira frase da narrativa de uma aventura na vida do protagonista, Lilico Bensaúde. Estamos no Rio de Janeiro dos anos 20, o Copacabana Palace ainda vai ser inaugurado mas alguns privilegiados já podem se hospedar ali.
Levado por seu primo, Lilico conhece um clube de mulherengos, fundado por dom Pedro I. Para poder entrar para o clube, ele só precisa ter um caso comprovado com um beldade famosa. Por sorte, eis que a atriz de cinema Tallulah Billings acaba de chegar dos Estados Unidos para filmar na cidade. A oportunidade é propícia, porém Lilico carece da malícia, da desenvoltura, do savoir faire, como diria ele, para proceder à sedução.
A empreitada naufraga. Mas Lilico e o primo não desistem. Para a segunda metade do romance, elegem como próximo alvo Lininha, a filha do ministro da Fazenda. A moça gosta de poetas e o plano é emplacar Lilico como astro das letras nacionais, com direito a resenhas compradas nos jornais, o que o leva até São Paulo para a (hoje célebre) Semana de Arte Moderna.
O lançamento do livro de poesias de Lilico é feito em sua fazenda em Rio das Flores. Comparecem tanto Lininha quanto Tallulah, complicando a situação. Confusion ensues. A sedução de qualquer delas garantiria a Lilico acesso ao clube que tanto deseja, porém resta saber se ele será capaz.
O enredo rocambolesco é engenhoso e divertido. O protagonista, bem intencionado porém ingênuo e levemente tolo, cativa. Não falta colorido à linguagem, que é bem humorada com elegância. Se isso te lembra as histórias de Bertie Wooster, não está longe da marca.
O autor ainda inclui um certo toque de mistério e suspense, com um personagem que rouba com elegância e recebe a alcunha de “O Lobo-Guará”. Esse gatuno, que furta inclusive um colar de diamantes de Tallulah e um livro raro de Lininha, é em tudo o oposto de Lilico. Ou será o próprio Lilico?
A parte da história em que Lilico tenta fazer sucesso literário é particularmente hilária. O caminho que o primo sugere é fazer uma poesia que reflita o sofrimento brotado da terra do brasileiro simplório e miserável. “O atraso brasileiro: isso que é moderno”. E dá-lhe erros propositais de ortografia, imagens bucólicas, tosquice generalizada. O plano funciona. “Um relâmpago racha o céu da poesia brasileira, e é um relâmpago lavrador e humilde”. A sátira de uma certa sensibilidade literária, que aliás não saiu de moda e talvez nunca saia, é bem feita.
A obsessão pelos símiles surpreendentes às vezes passa um pouco do ponto. “como se estivéssemos no Serenguéti e eles fossem uma matilha de mabecos”; “como se fosse um marido tentando ler uma lista de compras rascunhada pela mulher depois de ela beber uma quantidade excessiva de licor de amêndoa”; “Ao lado do seu cotovelo, no balcão, uma pilha de pires da altura de um saci médio”. Uma pilha de pires da altura de um saci médio?? O quê?
Frases como essas, nas quais aparece um detalhe absolutamente aleatório que supostamente contribuiria para o humor, simplesmente não funcionam (comigo). A surpresa faz parte do humor, obviamente; o inusitado, o insólito, fazem rir. Mas a bizarrice não pode ser tão grande e tão gratuita que elicite mais estranheza que hilariedade. Eu nunca ouvi falar em mabecos. Ninguém, ninguém mesmo, por mais exótico e extravagante que seja, jamais usaria mabecos nessa frase. Só um escritor se esforçando para ser engraçado faria isso. A presença dos mabecos, do licor de amêndoa (por que amêndoa?), do saci como medida de altura, não me causa riso, em vez disso me convence que esse texto está se esforçando para ser engraçado, o que faz a graça evaporar instantaneamente.
“minha voz foi coberta pela dele, tal qual um bêbado na calçada é coberto durante a madrugada pela manta de uma alma caridosa”. Aí, sim. Temos uma imagem inusitada, engraçada sem causar estranheza em demasia. “Disso que precisamos — disse o Patápio. — Voltar as costas ao português lusitano. O falar da nossa gente brasileira de pele tostada e sola do pé rachada. Isso ele, que volta e meia falava umas palavras em francês, italiano e até mesmo sumério no meio das conversas com vendedores ambulantes de cocada”. Sim, a imagem de alguém falando sumério com o vendedor de cocada é boa.
Mas os deslizes são poucos. Pelo contrário, ao longo das páginas Soares Silva coleciona alguns belos achados, que poderiam ter saído da pena do nosso frasista máximo, Nelson Rodrigues:
disse a mentira em um volume tão baixo que era a mesma coisa que dizer a verdade
O gângster é o único homem moderno que pode recitar um poema para uma mulher sem que ela sinta náusea
tinta suficiente no rosto pra dar uma segunda demão na Capela Sistina
O livro é engraçado, cumpre o que promete, bem escrito, gostoso de ler, tem um bom protagonista, ainda faz piada com a cena literária. Nenhuma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
Alexandre Soares Silva, que surpresa! Há alguns anos ele tinha um blog, quando blogs eram a novidade do momento. A novidade passou e eu perdi ele de vista. Precisei dar um Google pra saber o que é mabeco. Mas o livro tem um enredo muito interessante. Me lembrou o enredo do filme Ficção americana, que por sua vez é baseado no livro Erasure, de Percival Everett. Sugestão anotada! Vou ler assim que for possível.