O canal Selmo Cast trata de literatura e é um bom lugar para ouvir conversas interessantes.
Recentemente, fui eu o entrevistado. A entrevista pode ser ouvida aqui, e abaixo reproduzo uma transcrição levemente editada.
Por que que você diz “machadadas na literatura”? Você acha que não tá bom, que não merece outra coisa? Ou é só um trocadilho?
É bem humorado, né? A intenção não é ser particularmente agressivo, mas eu acho que é mais ou menos isso que falta no ambiente da crítica literária. Eu comecei no ano passado. Em março do ano passado, mais ou menos, a Dirce Waltrick do Amarante, tradutora e crítica, publicou um artigo na Folha de S. Paulo em que reclamava um pouco, ponderava, que a crítica brasileira elogia demais. O título do artigo dela era “Fabricação de supostos gênios desafia atuação dos críticos” e a ideia era que a crítica elogia demais, elogia muito, todo mundo é gênio e tal. Ela por exemplo diz assim: “Algo curioso parece estar acontecendo nestes últimos anos no Brasil. A proliferação de gênios na nossa cultura. Eu diria que nunca houve tantos autores extraordinários como agora na área da ficção”. Ela tá sendo irônica, é claro. Quer dizer que a crítica tá positiva demais, tá faltando aquele gume mais afiado. Então foi isso que me inspirou essa ideia do machado e das machadadas. Eu concordo com ela, acho que tá faltando um pouco… acho que o papel do crítico é elogiar quando o autor merece, mas é importante que ele explique que algumas obras não são tão boas e por que elas não são tão boas ou, quando são boas, por que elas são boas, e faça uma coisa que vá um pouco além do que a gente vê por aí, que são coisas vagas do tipo “fulano de tal demonstra muito domínio da narrativa” ou “a obra tal é uma obra urgente, que trata questões assim assado”, e fica aquela coisa muito por alto.
O problema é que esse é um fenômeno não só pertinente à crítica literária, é disseminado em várias áreas, o que eu chamaria de totalização da relação com o artista. As pessoas não querem mais só ouvir a música de um cantor ou ler o livro de um autor ou ver o filme de um ator. Elas querem se relacionar com o artista de forma total. Elas querem saber o que ele come, onde ele passa as suas férias, em quem ele vota, qual é sua etnia, seu gênero, seu sexo, orientação sexual, quer saber tudo, elas querem interagir com o artista de forma total, consumir o artista de forma total. Então isso faz com que… você desagua numa situação em que todas as dimensões do artista têm que ser aprovadas. A aprovação deixa de ser pontual para ser total.
Você não vai dizer que tal música é boa, você vai falar “esse cara é bom”. Você não vai dizer que esse livro é bom, talvez aquele não é tão bom, mas que esse escritor é bom, é maravilhoso, de uma forma total. E acaba que as diferentes dimensões da pessoa vão contaminando a sua avaliação, porque, como ela tem que ser total, você começa a ter aprovação que advém de outros aspectos que não são a atividade principal. Então você pega, sei lá, o Pablo Vittar, por exemplo. Canta pessimamente, mas recebe aprovação pelo aspecto sexual dele, pela postura dele de ser trans ou sei lá o quê. O Roger Waters que já tá na terceira idade faz sucesso ainda com os jovens, mas esses jovens talvez nem conheçam o Pink Floyd, eles gostam do Roger Waters porque ele critica os Estados Unidos, ele vem ao Brasil e critica o Bolsonaro, ele é um cara que tem uma postura política combativa e assim por diante, os exemplos abundam, tá certo? Então resulta que para você fazer sucesso e ter fãs e ser bem sucedido já não basta só uma boa obra, você tem que vender a sua personalidade inteira, a pessoa inteira. E aí você tem essa situação em que os artistas têm que estar o tempo todo nas redes sociais, se mostrando, se fazendo lembrados, palpitando sobre tudo, fazendo videozinhos e tal e isso é muito ruim.
Por outro lado, há o fenômeno inverso, que é a rejeição total. Não se rejeita mais uma obra específica, uma atitude específica, mas a pessoa do artista por completo, que é o famoso cancelamento. A qualidade da produção não importa tanto, porque a rejeição vai ser total, não vai ser pontual.
Esse fenômeno da totalização da relação com o artista é que é o grande problema e ela obviamente vai contra a crítica, porque a natureza da crítica é justamente a distinção, a separação, a análise, a consideração dos detalhes, a avaliação circunstanciada, enquanto a totalização é a anti-crítica, porque afinal se você precisa aceitar ou rejeitar totalmente, como vai criticar? Não cabe a crítica mais. Em vez de criticar você vai louvar ou vai desprezar, e de forma total. E vai acabar louvando ou desprezando pelos motivos errados, porque vai levar em conta aquilo que eu falei no começo: o que o artista come, onde passa as férias, em quem vota, a cor da pele, a orientação sexual, tudo isso vai acabar influenciando na decisão de você aceitar totalmente ou rejeitar totalmente.
Falta uma crítica que não seja desse tipo, que seja circunstanciada. E note que essa tendência de relação totalizante, de avaliação total, inclui o próprio crítico, que é uma espécie de artista também. O crítico vai ser avaliado de forma total, não vai ser uma ou outra crítica dele que vai ser julgada como boa ou ruim, como pertinente ou não, competente ou não, mas é a pessoa do crítico que vai passar por essa avaliação totalizante. E aí você começa a ter acusações do tipo “se criticou o Pablo Vittar, é porque é transfóbico; se criticou um autor negro, uma autora negra, é porque é racista”. Não vai ter mais “essa crítica não é boa, esse argumento não é bom” e sim “essa pessoa não é boa” e aí você acaba com a crítica.
Inclusive, pouco depois do artigo que eu comentei, da Dirce Waltrick, teve um outro artigo que ficou famoso, da Ligia Diniz, na 451. Ela fez uma crítica cuidadosa, argumentativa, baseada numa leitura atenta, numa leitura séria do então lançamento do Itamar Vieira Júnior, Salvar o Fogo, e foi acusada de racismo, aliás pelo próprio autor, o que é uma coisa bem chocante, o próprio autor se apresentou para dizer que aquela crítica era racista. É o que acontece num ambiente totalizante e é inevitável que a crítica vá ficando acovardada, vá ficando amedrontada, vá ficando acoelhada como disse o Temer, porqueao criticar pessoas que já passaram pela aprovação total, que já foram consideradas pessoas boas, vai sofrer uma repulsa total também, dos fãs daquele artista, dos outros escritores, do meio editorial e tal. Se o crítico sofre essa repulsa, que é totalizante também, não vai mais poder exercer a crítica, vai ser considerado não só um mau crítico mas uma má pessoa, e vai ser descartado como crítico e talvez também de outras atividades, porque o crítico muitas vezes também é autor, ou tradutor etc, e vai ser repelido em todas as suas dimensões. Esse é um problema muito grave.
Esse problema você acha que vem dos críticos, que deixam os autores terem essa reação, eles se acovardam, eles mesmos permitem, como um pai que mima demais, ou é simplesmente um problema dos autores que não tão sabendo lidar com crítica e estão tendo um comportamento mais infantilizado?
Boa pergunta. Todo mundo é um pouco. Em primeiro lugar os fãs, porque os fãs têm essa postura de relação totalizante com o artista e elegem algumas pessoas, como essa menina Taylor Swift. A moçada completamente alucinada com essa moça, eu ouvi umas músicas dela, não achei nada demais, não vi grande coisa ali para o tamanho do fenômeno que cerca essa moça. Outro dia teve uma crítica no New York Times de uma moça dizendo que a Taylor Swift devia se dizer homossexual mesmo que não fosse, porque a comunidade homossexual precisa disso, quer dizer, que coisa muito louca. Então os fãs têm essa relação totalizante e acabam jogando sobre o artista uma responsabilidade que não é para ser dele, de ser uma espécie de herói. Principalmente quando também o artista mesmo se coloca nessa posição, ao encarar a própria obra como um ato de resistência ou um ato político, uma obra de denúncia disso e daquilo, isso também convida a essa interpretação totalizante.
Você acha que já contaminou a nossa literatura toda? A gente não consegue mais ter uma literatura sem essa relação do escritor herói que tá denunciando?
Não digo que não dê para fazer de outro jeito, não gosto de fazer afirmações muito categóricas, mas sem dúvida o momento é esse, o momento é esse. É totalizante, polarizado entre os bons e os maus. E tem também a questão social, o crítico tem amigos escritores, às vezes ele mesmo é escritor ou tradutor, ele faz parte do meio das Letras, meio editorial e então não quer criticar a turma. Primeiro por uma questão de não querer gerar animosidade, criar inimigos ou perder amigos, e também por uma certa medida de cálculo de oportunidades, afinal se hoje eu elogiar uma pessoa influente talvez no futuro tenha alguma recompensa por isso, vão me elogiar ou vou ser convidado para alguma Flip da vida ou coisa assim. Acho que atualmente só se pode fazer crítica honesta se for anônima.
Como é que as suas machadadas estão sendo recebidas pelos escritores?
Tem diferentes reações, alguns levaram numa super esportiva, mas a maioria prefere o silêncio. Essa coisa é tão grave que às vezes a pessoa em privado fala que gostou da crítica, mas não divulga, não dá um like, não comenta, porque até mesmo se você der um like numa crítica desfavorável ao seu colega isso já é um problema. Pelo menos essa é a visão que eu estou tendo.
Aliás deixa eu comentar aqui que eu fiz mais de vinte resenhas e quero divulgar aquelas nas quais não fiz nenhuma ressalva, porque acho que isso é importante, não quero só descer o machado, tem também aqueles que eu achei que foram ótimos. Deixa eu falar explicitamente, em ordem cronológica: Perto dos Olhos de Deus, do Alessandro Thomé, editado pela Assírio e Alvim; Os Automóveis Ardem Em Chamas, do Marcel Novaes, editora Penalux; Você Me Espera Para Morrer, da Maria Fernanda Elias Maglio, editora Patuá; Vale o Que Tá Escrito, do Dan, ele assina somente assim, Dan, editora DBA; um muito recente chamado Utopia, Pandemia, Cabeça de Boi, do Alex Reis, ainda não foi publicado, é finalista do prêmio Kindle. Esses foram os cinco melhores livros que eu li recentemente. Para os outros todos que resenhei, eu dei… o meu sistema é assim: se gostei muito do livro, não dou nenhuma machadada, passa incólume; se o livro é bom mas tem algum defeito, dou uma machadada; se achei o livro ruim mas com alguma coisa que salva, dou duas machadadas e se achei muito ruim dou três machadadas. Esses cinco aí não receberam nenhuma, foram os que achei ótimos e os demais todos receberam uma, duas ou três.
De maneira geral os autores que receberam uma às vezes comentam alguma coisa, agradecem e tal, mas os que receberam duas ou três preferem o silêncio, nem sequer respondem, ignoram totalmente. Essa é a situação.
Esses cinco que você citou têm alguma característica em comum, alguma coisa que você acha que deva servir de modelo pros demais?
Não, não diria isso, eles são bem diferentes. O Perto dos Olhos de Deus, do Alessandro Thomé, é um livro bem poético, lírico. Acontece muito pouca coisa. É uma moça que decide se matar e compra um barco e navega pro alto mar, decidida a morrer em alto mar, mas ela encontra um gatinho dentro do barco e a presença do gatinho faz ela reavaliar os seus planos. É só isso, é muito pouco enredo mas ele tem um estilo muito bem desenvolvido. Já Os Automóveis Ardem em Chamas, do Marcel Novaes, é outra situação completamente, com um enredo até rocambolesco, eu diria, acontece muita coisa, tem duas histórias em paralelo, uma se passa em 2019 e a outra em 1970 e acontece muita coisa nas duas histórias, tem uma pegada meio policial até. Então são livros completamente diferentes, esse não tem assim uma coisa muito muito poética com a linguagem, é uma linguagem mais jornalística, mais de livro policial mesmo. Já o Você me Espera Para Morrer, da Maria Fernanda Maglio é mais parecido com o do Alessandro Thomé, são duas irmãs, lembra um pouco a premissa do Torto Arado, são duas irmãs gêmeas num fim de mundo do Brasil, não fica bem especificado onde seria, mas é uma vida muito difícil e também não é baseado tanto assim no enredo, é mais o tratamento da linguagem. Vale o Que Tá Escrito, do Dan, de novo tem muito enredo, acontece um monte de coisa, se passa em Brasília, tem extorsão, assassinato, violência. Todos eles são bem diferentes, eu acho que dá para fazer ótima literatura de várias formas diferentes.
Você tem esse substack, cujo conteúdo são as suas resenhas. Tem mais alguma coisa?
Não, são só as resenhas e a ideia é mais ou menos uma por semana, às vezes não consigo porque tenho outras coisas para fazer, uma por semana é bastante coisa, mas eu tento mais ou menos, talvez uma a cada quinze dias. O foco é em romances, romances nacionais e recentes, não digo o último lançamento da semana, mas pelo menos dos últimos dois anos.
Você acha que se a gente tivesse mais machados os autores teriam outro comportamento? Diante de mais machados dando machadadas na obra deles?
É difícil dizer, eu espero que sim, eu gostaria que houvesse mais machados. Nas críticas que eu vejo, inevitavelmente o crítico está se expondo e acaba… eu acho que o machado deles perde o fio com essa exposição. Eu gostaria que houvesse mais críticos anônimos e eu acho que todo mundo só tem a ganhar, o autor tem que conversar com a crítica, tem que… Se você tem uma crítica que só elogia ou ignora, porque você pode ignorar também, você tem a rejeição total, que pode ser por motivos outros, ou pode ser pela obra mesmo. Às vezes o crítico leu dois livros e um ele achou ruim, ele fala “vou fazer a crítica do que é bom”, porque faz uma coisa positiva, divulga literatura boa e tal. Vou fazer um artigo só para meter o pau no que eu não gostei? Que coisa mais triste, que coisa mais negativa, então ele deixa para lá o livro que não gostou. E isso não é bom, quer dizer, não é esse o papel da crítica.
Como é que você vê uma saída, pelo menos no caso da literatura? Qual é a saída dessa mentalidade totalizante que acaba sendo prejudicial para crítica, pros autores, que deixa o autor um tanto infantilizado e talvez o crítico também?
Não sei. Um caminho é esse da crítica anônima. Não sei quantas pessoas estão dispostas a fazer isso. Outro caminho possível são pessoas que já estão muito bem estabelecidas, não correm tanto risco de sofrer a rejeição total, começarem a exercitar um pouco da sua autoridade, mas eu não vejo isso acontecendo, até porque o mundo editorial no Brasil é precário, é difícil dizer que uma pessoa já está estabelecida, mesmo as pessoas que fazem sucesso podem deixar de fazer a qualquer momento, precisam estar cuidando da sua carreira, nenhuma delas vai querer se arriscar a criticar alguém que amanhã pode prejudicá-la, acho que eu não não vejo ninguém que esteja tão bem estabelecido que possa correr riscos desse tipo.
Você falou de cinco obras que escaparam de toda e qualquer machadada. A literatura contemporânea ainda tem o lado bom? Ainda tem aquilo que se salva?
Com certeza tem, sim. Tem. Mas veja que todos esses livros que eu mencionei são de editoras bem pequenas. Um da Assirio e Alvin, um da Penalux, um da Patuá, um da DBA e um ainda não tem editor. É claro que essas editoras pequenas correm um certo risco de publicar obras de autores desconhecidos, esses autores são praticamente desconhecidos, só são conhecidos de pessoas que estiverem muito antenadas. A Maria Fernanda Maglio já ganhou o prêmio Jabuti. O Alessandro Thomé ganhou o prêmio da União Brasileira dos Escritores, mas não é um cara conhecido. As editoras pequenas apostam nessas obras, mas apostam com uma tiragem ínfima. Uma editora pequena, com um autor desconhecido, publica no máximo 200 exemplares. Talvez a Maria Fernanda, sendo ganhadora de prêmio Jabuti, tenha uma tiragem um pouco maior, mas eu imagino que não deve passar de 500, 1000 no máximo. Então é um risco reduzido. Já as editoras grandes querem fazer muito sucesso, precisam girar uma máquina grande, então é natural, em todas as áreas é assim, querem apostas mais seguras e as apostas seguras não são essas, a aposta segura é alguém que vai passar por uma aceitação totalizante, uma pessoa que não só vai escrever um livro bom ou pelo menos aceitável, mas que vai marcar pontos em outros quesitos, seja na sua postura política, seja na questão da diversidade étnica, sexual etc etc e nas editoras grandes eu acho que é difícil de outra coisa acontecer, aliás a impressão que eu tenho é que isso está ficando na verdade cada vez mais forte em vez de ficar mais fraco.
Mas não tem um público que tá saturado exatamente disso?
Tem demais, tem demais. Esses best sellers vendem, mas o público que consome literatura não se informa muito, ele compra o que tá na estante, que apareceu na Folha de S. Paulo ou nas outras mídias grandes, esse é um problema bem difícil. Todas essas cinco obras que eu comentei, eu nem sei dizer direito quem são esses autores, entende, quais características eles têm além de terem escrito esses bons livros, não sei falar nada sobre eles, a minha crítica não é totalizante, é focada naquele livro, eu nem sei dizer se eles têm outros livros, estou avaliando esse aqui, e não estou avaliando o autor como pessoa, somente o texto.
Todas essas obras que eu comentei são ótimas, não tenho dúvida de que se fossem lançadas por editoras grandes e bem divulgadas, se tivessem resenhas nos jornais e tal, iam vender muitíssimo. A qualidade está lá, só que não tem espaço. Você tem que ver como as editoras pequenas vão se virar e pedir às grandes para darem um pouco mais de espaço para outras coisas. Mas essa demanda sempre existiu, esse problema é perene, de certa forma, não a totalização, mas a questão das apostas.
Você não vê um caminho para que essa bolha das pequenas seja furada?
Uma coisa que a gente tem que reconhecer é que os prêmios literários estão levando em conta as pequenas. O prêmio Jabuti, o Oceanos, o da Biblioteca Nacional, o São Paulo de Literatura, todos esses prêmios costumam ter entre os finalistas, e mesmo vencedores, obras de editoras pequenas. Não é mais o caso de você ter dez finalistas e sete serem da Cia. das Letras, como já foi. A gente tem que reconhecer que isso mudou e já é um caminho para furar um pouco essa bolha e as pequenas terem um reconhecimento, começarem a ter um reconhecimento.
E é impressionante que mesmo com a força das redes sociais elas não estão conseguindo chegar numa grande massa. Mesmo nesse ambiente tá complicado para todas elas
Você vê que o Substack nos Estados Unidos é um fenômeno, algumas contas de Substack nos Estados Unidos têm centenas de milhares de assinantes, a ponto de algumas pessoas já acharem que nem compensa mais tentar publicar livro numa editora, você já divulga só no Substack. Isso já tá começando a ser conversado nos Estados Unidos, mas no Brasil não, não tem essa penetração da, digamos, mídia alternativa não é bem a palavra, mas desses ambientes. Tá começando numa escala muito menor. Mas é a cultura brasileira, né, a matéria que nós temos é essa aí.
Eu ia perguntar se a falta desse fenômeno Substack no Brasil se dá exatamente pela falta de leitores
Sem dúvida nenhuma. Tem aqueles leitores dos destaques, que vão ler ali o Torto Arado, o Tudo é Rio, aqueles livros que explodem. Aí você tem o que alguns chamam efeito Mateus: a quem tudo tem, mais ainda lhe será dado. Quando aquele livro explode e é altamente divulgado, as pessoas vão e leem, mas não sai muito dali, é uma uma coisa meio circular, a pessoa lê o livro porque ele é famoso e ele é famoso porque todo mundo tá lendo e fica preso ali naquela coisa.
Você falou de cinco livros que são bons que mas que ainda infelizmente não furam a bolha. E tem alguns exemplos dessa cultura totalizante já infiltrada na nossa literatura. Poderia dar um Panorama Geral do que tá sendo produzido hoje? A maior parte é bom mas não chega em todo mundo? Ou o que é bom é uma parte menor? Como você avalia?
Aí você tá pedindo muito de mim hein? Um panorama de toda a literatura? Não me sinto apto a fazer isso. Eu só sei dizer que tem sim coisas boas, coisas excelentes sendo publicadas, tem, mas não é fácil de achar. Esse é um dos papéis do crítico, chegar e falar, olha, tem isso aqui, olha, tem aquilo ali. Isso aqui é bom, tem esse e esse defeito, atenção para isso e aquilo, mas vale a pena. Trazer essas obras, isso eu acho que falta, às vezes tem as obras mas não tem ninguém falando sobre elas, as editoras pequenas também não têm condição de fazer divulgação, elas têm ali o seu perfilzinho no Facebook ou no Instagram, no que quer que seja, mas isso é muito limitado, elas não têm capital para investir muito em divulgação. Esse nó é complicado.
Mas no seu caso, como é que chega a você? Você procura nas editoras o que tá saindo? Você tem contato com os autores, como é que você fica sabendo, se mantém por dentro dessas novidades?
Eu me mantenho por dentro é assim mesmo, nas redes sociais, acompanho muitos editores, muitos autores e vou vendo os lançamentos que acontecem. De vez em quando um autor escreve para mim, fala “lancei um livro, você não poderia ler?” Às vezes é ao contrário, eu escrevo para o autor e digo “vi que você lançou um livro, não quer me mandar?”, é uma coisa bem improvisada. As editoras podiam manter um crítico próprio, talvez fosse uma ideia, não seria uma coisa muito cara e seria interessante. Só que também tem o problema do crítico falar muito mal da própria obra da editora, de repente você vai ter esse sequestro da crítica de novo, ele vai querer só falar bem, falar só do que gostou, mas já seria melhor do que nada.
Você tem um Twitter e uma Substack. Tem alguma outra rede social com seu trabalho? Como tá sendo o seu alcance, como faz para chegar nas pessoas?
Estou no Facebook também. Eu não tenho um alcance grande, até porque recentemente essas redes têm limitado muito o alcance, tanto o Facebook quanto o Twitter têm deliberadamente restringido o alcance dos seus usuários, ainda mais quando você põe um link do Substack, aí é receita certa para matar o seu post. O ideal seria que o pessoal do meio divulgasse essas coisas e houvesse um debate, alguém produziria uma crítica, outra pessoa criticaria aquela crítica, outra rebateria aquilo e houvesse um debate literário, mas isso absolutamente não existe, nem sequer incipiente, não existe debate literário nenhum, isso é uma coisa triste.
Literatura é arte e arte é subjetiva, mas a crítica literária tem critérios objetivos para avaliar uma obra, tem pontos objetivos que você pode determinar se são bons ou ruins numa determinada obra literária?
Eu acho que sim. Depende um pouco do gênero, livros de diferentes gêneros vão ter diferentes critérios, mas de maneira geral é possível sim o crítico ler um romance, por exemplo, falo de romance porque é o tema da minha coisa, e prestar atenção, por exemplo, no enredo. O enredo que tá presente ali é bem construído, é bem amarrado? Caso o livro se proponha a ser realista, o enredo é verossímil? Outra coisa são os personagens. Se for um romance que se pretende realista, que pretende retratar pessoas como elas realmente são, ele consegue fazer isso ou ele produz personagens achatados, personagens que estão ali representando um tipo? Por exemplo, na minha última resenha, do livro da Eliana Alves chamado Solitária, uma das críticas que eu fiz foi justamente essa: personagens esquemáticos — você tem ali a família rica, cujos membros são todos mimados e cruéis, estão ali para serem assim, enquanto as pessoas pobres são muito bondosas, cheias de honestidade e empatia, aquela coisa maniqueísta. Foi uma crítica que eu fiz a esse livro, isso é uma coisa que a gente tem que olhar, como é que são os personagens.
Outra coisa é o uso da língua, se o texto é cheio de repetições, cheio de clichês, de imagens batidas, de imagens fracas ou se a língua está sendo usada de uma forma original, de uma forma incisiva. Se for fazer uma metáfora, uma metáfora provocante, inusitada, uma imagem forte. O léxico mesmo, está colocando na boca de um personagem palavras que ele realmente usaria ou aquele personagem está falando com a voz do autor? Às vezes você pega livros em que todos os personagens falam com a voz do autor, mesmo um personagem que saiu da favela, outro é um investidor super rico, o outro é jogador de futebol, todos eles usam o mesmo vocabulário porque o autor não consegue adequar o discurso ao personagem. Enfim, tem várias coisas. O diálogo com a tradição, quer dizer, existem vários tipos de literatura, tem uma literatura mais de entretenimento, por exemplo um romance policial vai fazer aflorar certas emoções, vai querer causar um medo no leitor, ou um suspense, uma curiosidade para descobrir quem é o assassino e tal, e vai girar em torno disso. Aí você não precisa se preocupar muito em ser original, você pode fazer um um plot twist que já apareceu em outras obras, você pode ter um um personagem muito parecido com outros personagens que já foram criados, isso não vai atrapalhar o seu leitor, já outras obras se preocupam muito mais com esse diálogo com a tradição, se preocupam com a influência que sofreram de grandes escritores que leram e que vão processar aquilo, mas tomam muito cuidado de não fazer um pastiche, um decalque, uma coisa repetida, então vai tentar lançar uma originalidade ali, algo diferente, tudo isso o crítico tem que estar atento para avaliar e em boa medida eu acho que permite sim uma avaliação bastante objetiva.
O crítico tem que deixar muito claro por que gostou de uma obra ou por que não gostou, não basta falar “ai, essa obra é urgente; ai, fulano tem um domínio da narrativa”. Uma coisa que eu busco muito fazer nas minhas críticas é reproduzir trechos. Quando eu falo que um autor lida muito bem com diálogos, eu ponho lá um diálogo longo, falo “olha aqui, tá vendo como esse diálogo é bom, por causa disso e disso”, ou às vezes eu falo que um autor não lidou bem com os diálogos, ponho lá o diálogo, falo tá vendo como… esses dias mesmo eu publiquei uma resenha, não lembro mais de qual livro era, mas eu falei que quase peguei no sono com um diálogo, porque dois personagens se encontram e ficam assim “E aí, tudo bem? Tudo bom. Como é que você tá? Tô bem. Ah, legal. Depois a gente vai lá, então? Vamos, sim. Então vamos. Então tá bom”. Quer dizer, não é assim que se faz, tá certo? Eu gosto de reproduzir trechos das obras e mostrar pro leitor da crítica de onde eu tirei a minha opinião e o que é uma coisa boa e o que é uma coisa ruim. É uma coisa que eu não vejo muito nas críticas de revistas e de jornais, raramente trazem trechos, então fica a dica aí para os colegas críticos.
Os leitores estão reagindo bem a isso, a esse tipo crítica, entre os seus leitores tá sendo bem aceita, como é que tá sendo a crítica da crítica?
De maneira geral as pessoas gostam. Quando alguém responde atravessado para mim, ou é o próprio autor, que não gostou de ser criticado, ou é um fã que passa pela aceitação totalizante e não quer que o autor seja criticado. Mas as pessoas de maneira geral estão apreciando, eu acho.
E esse número você tem percebido que ele tá crescendo a cada crítica? Porque eu suponho que quando você faz a crítica de um autor vem meio que a bolha dele, depois vem a de outro, assim sucessivamente
Vem crescendo e espero que aconteça mais, mas como eu te falei, com algumas exceções os autores não divulgam as críticas, a não ser quando eu faço uma crítica muito positiva, aí a pessoa fala “recebi essa crítica aqui, bem legal e tal”, mas quando eu dou uma machadada já é o suficiente para as pessoas silenciarem. Qualquer ressalva que eu coloco, tipo “esse livro é bom, mas os personagens estão maniqueístas”, ou “esse livro é bom mas a autora não não fez os diálogos legal”, já é o suficiente para o autor tentar me evitar e me ignorar. Tudo bem, tão no direito deles, mas eu acho uma pena que seja assim. Por outro lado, a Lília Guerra tem um livro chamado O Céu Para os Bastardos, eu dei uma machadada para ela e ela divulgou a crítica, respondeu, me agradeceu e falou que pretende no futuro levar em conta tudo que eu disse, quando for escrever o próximo livro, achei uma conduta irrepreensível da Lília, exemplar, aliás deixo aqui meu agradecimento à Lília pela sua postura. Mas ela é minoria.
Eu poderia ao fazer uma crítica de um livro aproveitar para comentar que aquele autor é um cara ótimo, que ele defendeu uma pauta super importante, mas eu nunca vou fazer isso, a crítica precisa evitar esse tipo de coisa. Aí eu já tô indo na contracorrente porque a crítica hoje não evita isso, ela busca isso, você vê críticas que são totalizantes, fazem questão de abordar outras questões, não ficar limitada ao texto mas comentar a postura do autor, coisas que ele já fez e as bandeiras que ele defende. Eu compreendo que às vezes o crítico acha que está trazendo elementos outros e fazendo uma avaliação mais completa e tal, mas isso tem efeitos colaterais ruins, eu acho que é melhor a crítica que fica restrita ao texto. Qualquer um que gosta de literatura e faça leituras atentas de livros pode fazer a sua divulgação, mas como eu falei dificilmente a pessoa vai ter coragem de criticar os grandes usando seu próprio nome, então crie pseudônimos, venham para o mundo do anonimato.
Você teria algum conselho para quem quiser se aventurar na crítica literária hoje?
Leia muito, bole um pseudônimo e atue nas redes sociais, no Substack e nas demais, porque vai demorar mas uma hora ou outra esse vai ser o locus do debate, vai ser o Substack, não vai ser nos jornais e nas revistas, vai ser nas redes. O Brasil tá para trás nesse aspecto mas é inevitável.
Deixa eu passar pras perguntas de sempre do Selmo Cast, que visam aproximar as pessoas da literatura. Como era na sua casa esse tratamento com os livros?
Meus pais liam bastante, minha casa tinha inclusive um escritório com uma das paredes forrada de livros, veio deles esse incentivo, sempre me deram livros de presente, exemplares do Monteiro Lobato, depois da coleção Vagalume, eu tinha muitos. Eu li muita história em quadrinhos também.
A sua primeira lembrança com livro, você sabe me dizer qual é?
Talvez o Menino do Dedo Verde. É um dos primeiros. Eu gostei muito do Monteiro Lobato, li muito Monteiro Lobato e para a leitura em si eu acho que as histórias em quadrinhos contribuíram muito.
Se você pudesse escolher um livro que você acha que te marcou mais
Um livro só para a vida inteira é difícil. Uma leitura que me marcou quando eu era criança foi Sherlock Holmes.
No mundo de hoje como é que você faz para aproximar a criança da leitura?
Fazendo uma curadoria, dando a ela livros bons. Não precisam ser os livros que você leu, mas só de não empurrar nela livros ruins já tá bom.
E mesmo com essa concorrência de tablet, celular e computador você acha que consegue?
Eu acho que consegue. O livro pega né, quando acerta. Quando a criança se interessa ela pega. Eu tenho dois filhos pequenos e quando pegam um livro que gostam, eles devoram. Eles leem 100 páginas por dia. Eles sempre viram a mim e a mãe deles lendo livros e a ideia de que você pode passar algumas horas lendo um livro, que isso é algo prazeroso, essa ideia sempre esteve presente e é de suma importância.
Teve algum personagem da literatura que te inspirou de alguma forma, cujo comportamento você tentou imitar? Teve o Sherlock Holmes né, mas teve outro que você queria ser igual a esse cara?
Para mencionar só mais um, eu mencionaria Athos, dos Três Mosqueteiros.
A literatura não dá uma recompensa na hora, não é uma coisa que você vai lendo e vai ganhando dinheiro a cada página que você vira, mas você acha que ela teve algum efeito, te livrou de alguma situação na vida cotidiana, alguma coisa que já tinha acontecido na literatura e a literatura te ajudou a escapar de alguma situação ruim
Um episódio anedótico eu não vou ter não, mas eu acho que, de maneira geral, com certeza a literatura joga luz sobre certos aspectos da natureza humana, da alma humana, que a gente demoraria mais para descobrir por tentativa e erro. Às vezes lendo num livro você tem um contato com aquilo antes do que teria. Por exemplo, a ideia de que pessoas fazem o mal estando perfeitamente convencidas de estarem fazendo o bem. Isso é uma ideia que a gente pode demorar para sacar no mundo, se for para dar um exemplo, esse é um que eu peguei bastante cedo da literatura.
Agradeço muito a sua vinda, é um olhar importante sobre a crítica literária que você deu e espero que isso chegue a mais pessoas, mais pessoas conheçam o seu trabalho e vejam a importância do que você está fazendo, é importante, é saudável pra nossa própria literatura, espero que seja reconhecido
Obrigado.
Li a transcrição da entrevista e gostei bastante de entender como você pensa. Parabéns. Adorei também você elencar o que um crítico deve levar em conta ao avaliar um livro e o detalhe de colocar o trecho do livro onde está o item objeto da dua avaliação. 😉👏🏼👏🏼👏🏼