Na Sombra do Herói, 380 páginas, é Mariposa Azual
O livro narra um período de aproximadamente quatro décadas na história da família Gonzaga Santos. O herói do título é Otávio Gonzaga Santos, médico sanitarista célebre e nacionalmente respeitado, inspirado na figura histórica de Oswaldo Cruz.
Aliás, Oswaldo Cruz é avô da autora do livro, de modo que ela de certa forma conta a história da própria família, de forma romanceada. Assim como Oswaldo vira Otávio, sua esposa Miloca vira Minoca, o sogro comendador passa de Fonseca a Pacheco, etc. Entretanto, não convém buscar paralelos demais entre a vida real e a ficção.
O pano de fundo da história é a Era Vargas, com direito a menção a Olga Benário, a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra. As opiniões dos Gonzaga Santos a respeito desses assuntos se dividem, alguns apoiam Vargas, outros o consideram um ditador, alguns lamentam o avanço alemão, outros secretamente o celebram.
Um dos aspectos sociais interessantes é que as mulheres não estudam nem trabalham, convivem somente com membros da própria família e por isso todas são conhecidas somente por seus apelidos domésticos: Minoca, Liloca, Naneta, Duduche. A única que trabalha é Eva e, não por acaso, não tem apelido.
Os personagens principais são os dois filhos de Otávio, Tadeu e Conrado, principalmente este último.
Tadeu enriquece à base de negociatas e transações mal explicadas (nem os demais personagens e nem o leitor ficam sabendo direito de onde vêm os seus negócios). Muito rico, viaja pelo mundo curtindo a vida e torna-se um dos primeiros aviadores do país.
Conrado forma-se médico e vai trabalhar no Instituto fundado por seu pai. Dedica-se também ao xadrez, chegando a ser campeão brasileiro (aparentemente o personagem é inspirado em Walter Oswaldo Cruz, que foi enxadrista e é o pai de Gilda), mas sua paixão verdadeira são as mulheres.
A princípio ele se casa com uma de suas primas, Eva. Conrado combina com ela que terão um casamento aberto, contrários às convenções burguesas (os dois se veem como revolucionários, Eva inclusive entra para o partido comunista). Porém logo fica claro que ele pretende que essa abertura seja para um lado só. Acaba tendo um filho com a amante. Ou melhor, uma filha, para seu desgosto.
Conrado e Eva têm seus próprios filhos, mas o casamento deles oscila até desmoronar. Conrado vive dividido entre o amor pelas mulheres e pela gandaia, o xadrez e a vida científica, na qual acredita estar predestinado a ter sucesso. O divórcio litigioso do casal ocupa a última parte do livro.
Na Sombra do Herói é um romance como já não se escrevem mais. Tanto no tema da saga familiar quanto no estilo. A linguagem é adequada à época em que se passa, o primeiro terço do século XX. A leitura de fato desperta lembranças de romances do século passado, quiçá do retrasado, a esta altura já um tanto amarelados.
Sentou-se na cadeira de balanço, sacou da algibeira um grande lenço bordado com monograma, enxugou o colo e a testa, assoou-se, dobrou o lenço em quatro e guardou-o no bolso. À volta do largo pescoço desfaziam-se gotículas de suor. O crânio liso, orlado por uma coroa de cabelos prateados, refletia uma pequena parte da luz intensa do meio-dia. Para distraí-lo das agruras do presente, Tadeuzinho incitou o avô a contar as peripécias do revés passado
Em quantos lançamentos recentes encontraremos “algibeira” e “orlado”? A autora usa do português castiço com habilidade, mas para o meu gosto há por vezes excesso de adjetivos e advérbios modais:
O neto se despediu com um beijo na face rubicunda do velho e desceu aos saltos a grande escadaria de madeira escura — sem fazer uso do elevador hidráulico instalado com orgulho tecnológico pelo pai — e rápido alcançou a rua e fez-se dono da tarde dourada, com suas excitantes possibilidades
A bem da verdade, o título se mostra um tanto inadequado, já que o “herói” Otávio não ocupa muito espaço na história, e o leitor não chega a perceber essa suposta “sombra” que ele deveria lançar sobre os demais. Os personagens o mencionam com respeito, porém não parece que sua figura seja tão imponente assim. A vida de Tadeu não se assemelha em nada à sua, e Conrado mal se lembra dele.
A narrativa é um pouco dispersa, voejando pelos detalhes de inúmeras cenas, sem um espírito central que a amarre ou lhe dê um rumo concreto. Não é a história da família, não é a história de Otávio, nem de Tadeu. Poderia ser a história das mulheres, mas é Conrado que concentra a atenção e chega mais perto de ser um protagonista. Ainda assim, a narração só alcança a metade de sua vida, e faz tantos desvios pelo caminho que ficamos sem saber se era disso que se tratava. Como retrato de um momento específico do Brasil, visto da perspectiva de uma classe social específica, é interessante. Mas o drama humano acaba ficando meio frouxo.
Uma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)