O Fio da Faca, cerca de 200 páginas, ainda é inédito
Marcel Novaes é autor do ótimo Os Automóveis Ardem em Chamas, editora Penalux, que foi resenhado anteriormente aqui e não levou nenhuma machadada. Ele me mandou o manuscrito de seu romance mais recente, ainda inédito, chamado O Fio da Faca, e me pediu uma leitura crítica. Como gostei muito do outro livro, concordei. Por meu turno, pedi autorização para postar uma resenha, e ele concordou com isso.
O livro começa com a protagonista, Rebeca, escrevendo uma matéria com acusações sobre um deputado federal. Acompanhamos um pouco do seu processo de escrita, especialmente o cuidado que ela tem com as palavras.
Chegou a “sofreu acidente de automóvel”. Deveria usar “carro”? Será que “automóvel” já era palavra antiga? Isso era o de menos. A palavra “sofreu” colocava o personagem na condição de vítima, não era esse o tom desejado. Melhor dizer que ele “causou acidente”. Muito direto? Daria processo? Provavelmente, não. Talvez algo neutro, como “esteve envolvido em acidente”. Ora, vamos lá, o cara estava dirigindo bêbado, dava para ir com “causou” mesmo.
Seu telefone toca: é o editor, com uma nova proposta de reportagem. Ela deve viajar para fazer uma reportagem sobre uma acusação de estupro. A princípio, parece um caso pequeno demais. Mas o acusado é negro e a vítima é branca, e o editor vê potencial para uma discussão mais ampla. Rebeca parte em busca da notícia.
Esse primeiro capítulo estabelece o contexto: temos uma jornalista, ou seja, alguém que busca a verdade dos fatos, ainda por cima cuidadosa com os conceitos, alguém que sabe que a linguagem pode ser afiada como uma faca.
Acontece que o palco da reportagem é sua cidade natal, de onde ela saiu há vinte anos e que desde então só visitou uma vez, no enterro do pai, há dez anos. Então temos o segundo tema: o reencontro de Rebeca com seu passado, especialmente com a mãe, ainda viva, e com a imagem que tem do pai, já falecido.
Quando a senhora abriu a porta, Rebeca levou um segundo para reconhecer a mãe. Ela tinha envelhecido bem mais do que a casa. O cabelo era de uma brancura total, como fios de algodão. Rebeca se lembrou da avó. Sua mãe se tornara sua avó. E ela, quem ela se tornaria?
Reencontrar a mãe é a parte mais difícil, e ao longo da história vamos entender melhor as razões disso. Mas é interessante que o reencontro com a mãe enseja também um reencontro com a imagem que a mãe tem dela:
— Está casada?
Rebeca quase engasgou com o chá.
— Não.
— Por que não?
— Por que deveria estar?
— Uma mulher na sua idade, bonita como você. Sempre foi a mais bonita da sala de aula, a mais bonita do balé, a mais bonita de qualquer festa. Era uma princesa. O cabelo brilhava. A vida toda me disseram: “Isabel, essa menina é uma princesa”.
— De grande coisa isso me valeu.
— Não seja ingrata. Deus lhe deu a beleza, já é muita coisa, quem tem de saber lidar com ela é você.
O autor introduz aqui algumas informações novas: Rebeca é, ou foi, muito bonita, mas lida mal com isso; sua relação com a mãe nunca foi boa; a mãe é bastante religiosa (o nome incomum fica mais claro: Rebeca é uma personagem bíblica). Aliás, a religião é um tema que subjaz à historia do livro, de forma sutil, emergindo aqui e ali e marcando bem a última cena, se eu entendi bem.
A investigação do caso alegado de estupro leva Rebeca à universidade, onde entrevista alunos e professores. Aqui o livro se mostra bastante atual, introduzindo discussões sobre racismo e machismo. Em seu livro anterior, o autor abordou temas relacionados a esquerda e direita no contexto da ditadura e seu legado, sem jamais cair em didatismo/moralismo/panfletagem, conseguindo sempre respeitar o leitor ao contar uma boa história, e também aqui os temas polêmicos são abordados com inteligência e profundidade, sem maniqueísmos fáceis. A conversa com o professor que faz parte do movimento negro é muito bem conduzida.
Questões femininas também são tratadas com humor e com delicadeza, nas conversas leves que Rebeca tem com suas antigas amigas, e nas mais pesadas com sua mãe e sua irmã mais velha. É na conversa com a mãe de uma de suas amigas que Rebeca vai descobrir um velho segredo de seu pai, guardado durante anos (essa cena tem a participação de um gato que corre atrás de um reflexo na parede, boa imagem de alguém hiptonizado por uma ilusão).
Novaes se sai bem com as recordações da infância de Rebeca, consegue transmitir a estranheza que sente alguém que volta à cidade natal depois de vinte anos, que reencontra pessoas, que se vê refletida nos olhos dessas pessoas. Em um dos capítulos Rebeca caminha pelo centro da cidade imersa em memórias.
A praça permanecia a mesma, com as pombas fazendo vôos baixos e bicando antigas bitucas de cigarro. Experimentavam uma bituca, não gostavam, cuspiam. Passavam para a próxima bituca, talvez um chiclete endurecido, sempre na esperança de encontrar uma minhoca. (O passarinho que ela encontrara a caminho da escola, naquele dia, era bonitinho. Tinha o bico curto e os olhinhos totalmente pretos, brilhantes. Apanhou-o do chão com cuidado, o pescocinho mole. Ele parecia estar desistindo da vida. O que é isso aí na sua mão, perguntou Raquel, você não pode sair pegando qualquer porcaria que encontra no caminho. É um passarinho, respondeu.)
Na segunda metade do livro, acontecem as principais conversas que Rebeca precisa fazer para sua reportagem, com a vítima do suposto estupro e o acusado. O texto toma o cuidado de respeitar o ponto de vista de cada um desses personagens, que saem das páginas como pessoas de verdade, com dramas reais.
Antes do final, ainda temos algumas surpresas e revelações, mas não convém dar spoilers.
O livro é muito bem escrito, como o anterior também era. Traz um drama interessante, narrado de forma delicada, com personagens bens construídos. Trata de temas atuais, mas como parte de dramas humanos, sem discurso palestrinha. Em suma, ótimo. Espero vê-lo publicado em breve.
Nenhuma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
Muito interessante e conciso este review. Curiosa por conhecer este livro. 😊