Objeto cintilante: história sulfúrea, 176 páginas, é da Faria e Silva.
Dante recebe uma ligação dizendo que sua filha foi sequestrada e que ele deve providenciar o resgate sem contactar a polícia. Nós o acompanhamos quando encontra os supostos sequestrados, num lugar remoto e perigoso. É um golpe. Ele acaba espancado e roubado. Essa primeira parte do livro é uma espécie de thriller.
Na segunda parte, a protagonista é a filha de Dante, Antônia, e o tema passa a ser sua relação doentia com as redes sociais.
Tudo emoldurado pela tela do celular e, agora, pelo feed do Instagram. O pico de dopamina quando a imagem se transforma em postagem. A partir daí, todos os sentidos se voltam para a performance. Quantos verão, quem será impactado, quais serão as melhores reações, e na timeline de quem haverá a replicação fidedigna de centenas ou milhares de Antônias exatamente iguais? Passa-se um minuto e não há nenhum like. O que aconteceu? Passam-se cinco minutos e não há like algum. Qual o problema? Dez minutos e zero likes, nenhum comentário ou save. Definitivamente, há algo muito errado. Subitamente, o quarto parece um pouco menor do que antes, e também mais quente. A boca seca e a transpiração se excede.
A menina é infeliz e carente, passa o tempo todo online e já está até mesmo frequentando um terapeuta para tratar essa dependência. A relação com o pai foi destruída quando ela começou a postar fotos sensuais no Instagram (só de calcinha). Também degringolou a relação com o namorado, que chegou a agredi-la.
O tema não é tanto a garota quanto a própria internet. André Timm está muito preocupado com as redes. “A câmera de seu computador é capaz de saber com precisão as áreas para onde Antônia dirigiu seu olhar durante um vídeo no YouTube, e isso entrega mais do que parece entregar, especialmente quando cruzado com o histórico de pesquisas no buscador e, por sua vez, com os vídeos curtidos, com as postagens em que se demorou por mais tempo no Instagram”.
Estamos sendo monitorados, controlados, estamos vivendo vidas de mentira, essa é a “mensagem” do livro. A vida “de verdade” está “lá fora”, como fica claro na cena em que Antônia é quase atacada por um cachorro bravo (o susto com o cachorro a faz derrubar o celular, que se quebra, mas é substituído no dia seguinte bem cedo).
Na terceira parte, temos Alice, mãe e esposa. Seu casamento com Dante já estava ruim e ficou ainda pior depois que começaram a receber, enviadas por pessoas perturbadas, imagens do acidente de carro no qual a filha faleceu. Descobrimos que também ela leva uma vida falsa, pois errou ao abandonar seus sonhos para se casar. Parte da tristeza ela desconta na empregada:
— Mara, você lembra das coisas que eu mandei você fazer ontem? Coloquei até a lista na geladeira — Alice questiona.
— Sim, Dona Alice, mas não deu tempo, só os rejuntes me tomaram boa parte do dia
— Mas tem que focar no trabalho, Mara. Como é que vai dar tempo ouvindo música o dia todo, distraída assim? Preciso que você faça tudo hoje ainda.
— Mas tá quase na minha hora, Dona Alice. Tenho que pegar meu filho na creche.
— Mas então devia ter pensado nisso antes, Mara. Já pensou se eu começo a descontar do teu salário? Um dia é filho doente, outro dia faz corpo mole. Tá difícil, assim a coisa não anda mesmo. Mas tua sorte é que eu sou boa pra você.
Também neste caso a internet aparece como fonte de sofrimento.
As mesmas redes em que suas amigas pareciam ter vidas perfeitas. Em que as dinâmicas familiares soavam sempre idílicas, onde largos sorrisos tentavam mostrar como aquelas mulheres eram casadas com homens que as respeitavam, que levavam em consideração aquilo que diziam, que andavam ao lado, sem tentativa alguma de estabelecer uma sutil ou nem tão sutil relação hierárquica. Fotos que mostravam filhos felizes, bem cuidados, fartos de amor e compreensão, e não drenados de vida, desesperados por afeto, reféns de resquícios de atenção que mendigavam em cada postagem. No fim, era como se tudo isso fizesse com que Alice se sentisse culpada inclusive por não se sentir feliz e grata à vida que tinha. Ainda que, no fundo, soubesse que cada uma dessas imagens postadas fosse como vidas cenográficas, habilmente construídas de forma a expor um verniz de perfeição na frente, enquanto, nos bastidores, tudo que havia eram imensos espaços vazios e frágeis escoras suportando o peso daquelas mentiras bem iluminadas. Uma pseudofelicidade despótica, imposta.
Confesso que tenho problema com essas condenações da “sociedade” e tentativas de dizer às pessoas como viver. Saia do celular! Vai tomar um ar fresco! Viva cada dia como se fosse o último! Beba água!
Você, leitor, que leu o livro ou que lê esta resenha, me diga: sua vida é assim? Você posta fotos com largos sorrisos que escondem desespero por afeto? Sua vida é cenográfica, suportada por frágeis escoras? Sua pseudofelicidade é despótica e imposta? Você se vê nesse trecho? Ou será que é sempre a vida dos outros que tem essas características? São sempre os outros que são rasos, falsos, alienados, drenados de vida. Você, não. Você vive profundamente, sua vida vibra com planos, com problemas, com relacionamentos. Se pelo menos as outras pessoas fossem mais parecidas com você!
Centenas, talvez milhares de pacotes, por sua vez, consequência de milhares de cliques. O medo como moto-perpétuo do mercado de consumo, a vontade de ter, que sufoca o medo de ser. Um pacote puxando o outro, um pedido emendado no outro, criando a cortina de fumaça perfeita que distrai, que anestesia, que impede de pensar no que está por vir, na noite que se aproxima, no dia seguinte, no mês que vem. Há sempre algo no que se prender. Recebemos seu pedido; Pagamento aprovado; Em separação; Entregue à transportadora; A caminho do destinatário; Entrega concluída. Jargões usados à exaustão, a ponto de se tornarem parte do imaginário comum. Um fio condutor cujo traçado é sempre a busca pela felicidade, que, ironicamente, resulta na infelicidade. Muitas vezes, não aquela decorrente da falta de escolhas, mas, pelo contrário, do excesso.
O terrível consumismo da sociedade moderna. Os outros são tão consumistas! Se pelo menos fossem mais como eu!
O autor escreve razoavelmente bem. Constrói algumas boas cenas, como os momentos de tensão no começo do livro, ou esta reflexão sobre um telefone antigo: “Nesse corredor, há um dispositivo obsoleto, um telefone de fio que repousa no escuro, na madrugada, sem uso, exceto pelo fato de dividir eras. Há anos já não toca, há anos seu gancho não é levantado da base, mas ele resiste, impassível, silencioso noite adentro, como se nunca perdesse a esperança de ser usado outra vez.”
O problema é que ele quer usar a literatura como meio de denúncia. Quer “conscientizar” a respeito de problemas atuais. Quer ser atual. O capitulo 32 tem mais de dez páginas ocupadas por grandes balões de conversa, como os do whatsapp, e ocuparia uma única página na formatação normal. Já vi esse recurso modernex em algum outro livro, mas já não me lembro qual era. Pois é, esqueci.
Os aspectos didáticos passaram na frente da construção de bons personagens e de uma boa história. Temos um empresário que negligencia a família, uma esposa infeliz no casamento, uma adolescente que não sai do celular. Poderiam ser bons pontos de partida, mas o livro fica por aí mesmo.
Duas machadadas.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
Eita, duas. Doeu um pouco, mas passo bem. Obrigado pela leitura!
Teu Substack acabou se tornando uma das minhas leituras preferidas, Décio. Vou me divertir bastante se encontrar um livro meu por aqui algum dia. Abraço.