A Boba da Corte, 104 páginas, é da Fósforo
A narradora, que aparentemente é a própria Tati Bernardi, discorre sobre sua vida, especificamente sobre o fato de ter saído da pobreza e ascendido socialmente, a ponto de socializar com a nata dos paulistanos que são herdeiros, que não precisam trabalhar, que são meio intelectuais meio de esquerda (apud Antonio Prata), e a quem ela despreza terrivelmente, apesar de estar constantemente buscando sua aprovação, contradição que lhe causa uma boa dose de ansiedade e insegurança.
Tati quer ser rica, culta e elegante, e quer ter amigos ricos, cultos e elegantes. Ao mesmo tempo, se orgulha de suas raízes trabalhadoras e se ressente do preconceito que acha que sempre enfrentará.
tenho certeza de que estou me tornando uma daquelas pessoas ridículas e odiosas. O tipo de gente que, por alguma razão, eu sempre quis ser e, ao mesmo tempo, sempre quis destruir
Você quer escrever sobre uma vida inteira dedicada a chegar a este lugar que você nunca (nunca, nunca) chega. Este lugar onde você já está há tanto tempo, mas é impossível aceitar que era “só isso”. Que as pessoas desse mundo não são nada demais. Que a vida delas não tem nada de muito interessante.
Confesso que este foi meu primeiro contato com a tal da “autoficção” da qual até hoje só tinha ouvido falar. Então é isto? A autora conta suas memórias, mas com permissão para mentir e romantizar livremente? Ou é uma história fictícia, apenas inspirada de longe na vida da autora? Acho que não há como saber. Poderíamos perguntar a ela, mas isso já seria jornalismo e não literatura.
Nessa época minha filha tinha uma babá chamada Daniela, que era uma mulher bonita, corpulenta, e eu vivia a protegendo dos comentários dos funcionários do prédio em que eu morava. Eles mexiam com ela, faziam piadinhas que a deixavam sem graça, e fui até o síndico, falei com a administradora, mandei cartas, registrei no caderno do condomínio. Ficava pensando qual era a palavra que definiria o que faziam com a moça: assédio, tosquice, ignorância, falta de “educação afetiva”. Aqueles homens sem estudo, advindos de famílias quebradas, sem nível, sem livros, sem viagens, sem filmes, sem cultura, famílias que se comportavam mal, que tratavam mal as mulheres, aqueles homens eram uns desgraçados a serem punidos com demissão ou uns coitados frutos de um país tão precário e machista?
Como ler o trecho acima? Quem está falando é apenas a narradora ou a Tati de verdade? O que primeiro me chama a atenção é que ela só quis entrar em contato com o síndico e a administradora, nunca diretamente com as pessoas envolvidas. Talvez considere aqueles homens toscos indignos de uma conversa com alguém tão sensível quanto ela. Em seguida, observo que não são livros, viagens e filmes que farão alguém ser uma pessoa decente (aliás, é curioso como a trinca “livros, filmes, viagens” aparece várias vezes no texto). Mas ao entrar nessas discussões eu sinto que já não estou fazendo crítica literária, já aceitei ler o livro como um ensaio, como um artigo de jornal, ou seja, como não-ficção.
Quando ela se lamenta, sobre o namorado, do qual pelo visto não gosta muito, que “Ele me fuzilou com olhos de grande educador. Ao rir de como a elite pode ser boboca, eu ria dele”, ela está falando sobre o namorado de verdade? Ou de um namorado fictício? Essa distinção é importante para o juízo que farei não só do livro mas da autora.
Só que ela não está preocupada com o meu juízo. “Me sinto profundamente suburbana e ignorante porque não tenho a malemolência dos meus amigos da elite intelectual”. Essa frase aparece já perto do fim, mas a obra inteira está resumida aí, está contida aí, as páginas não contêm senão repetições dessa sentença em múltiplas variações. Os olhos de Tati estão voltados para um público extremamente restrito, é com o juízo deles que ela se preocupa. Essa tal “elite”. Ora, quem conhece essas pessoas? Quem está interessado nelas? Quem se dispõe a ler um livro a respeito delas? A resposta é fácil: elas mesmas!
Então temos uma obra em que o autor, em primeiríssima pessoa, fala de si e de seus amigos, oferece umas reflexões ligeiras, contando umas anedotas bom humoradas, algumas mais, outras menos, divertidas. Conclusão: isso não é um romance, é uma longa crônica ou uma coleção de crônicas. Sendo assim, Fernando Sabino, Nelson Rodrigues e tantos outros cronistas já faziam autoficção décadas atrás. A diferença aqui é que parece que este livro foi escrito para ser lido pelos amigos e quer detonar os amigos, de modo que talvez haja aí uma tentativa de fazer análise em público, uma espécie de autoajuda literária.
O que não quer dizer que não seja bem escrito. Tem um sarcasmo afiado, é engraçado, e somos obrigados a concordar com muito do que ela fala. Mas ao final essa tal autoficção, essa tática de misturar a literatura com o mundo real, me parece um tipo de trapaça. É como se ela dissesse “olha, pessoal, estou me abrindo aqui, estou vulnerável”. Não podemos achar os personagens mal construídos, afinal são pessoas reais; não podemos achar um anedota inverossímil, afinal aconteceu mesmo. É como fôssemos induzidos a uma certa condescendência com a escrita por ela ter supostamente feito um pequeno sacrifício de sua intimidade.
Não sei. Perdoem a insipiência dessa análise, mas é que meu projeto é resenhar romances, não crônicas.
Pelo egocentrismo, uma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
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Pelo texto achei que ao fim seriam duas machadadas.
Bem, o livro certamente é relativamente interessante em algum aspecto, porque a crítica ficou muito boa. A observação da "trinca: livros, filmes, viagens", é bastante arguta também.