A natureza da mordida, 240 páginas, é da Record
Uma moça chamada Olívia faz amizade com uma mulher mais velha chamada Biá. As duas passam as manhãs de domingo juntas, enquanto Olívia conta aos poucos a história de como foi abandonada por uma certa Rita. Biá já mostra sinais de senilidade, esquece algumas coisas, inclusive a história que Olívia vai lhe contando.
Os capítulos alternam a narração que Olívia faz de seus encontros com Biá e umas anotações da própria Biá, que giram em torno do fato de que Biá também foi abandonada — por seu marido, Teo — e isso abalou sua relação com a filha. Essa história vai se esclarecendo bem devagar.
As duas mulheres se aproximam a partir de suas experiências de abandono, que são a tal “mordida” da vida.
Em um capítulo, Olívia conta toda sua história em uma carta para Biá, narrada em primeira pessoa. O que aconteceu é que Olívia tinha uma intensa relação de amizade com sua vizinha Rita, mas um belo dia esta parou de falar com ela, sem lhe dar nenhuma explicação, e ela nunca superou essa rejeição.
Quando Biá morre, Olívia fica amiga da filha dela, Teresa, que reconta a história do abandono do pai. A partir daí, a partida de Rita perde importância, e o livro passa a ser dominado pela partida de Teo. As conversas com Biá são substituídas pela conversa com Teresa, que continua a ser intercalada com as anotações de Biá. Queremos saber de uma vez por que é que o cara se mandou, mas Carla Madeira não diz, vai alongando e criando suspense.
Ao final, Teresa descobre que o pai tem uma pousada na serra. Ela vai até lá. Depois de um passeio até uma cachoeira, encontra-se com ele. Se abraçam. Conversam apenas banalidades. Ela então vai até o quarto, toma um banho e… dorme! Em vez de falar com ele, vai dormir.
A moça depois acorda de madrugada e vai até o salão da pousada. Fazer o quê? Não sabemos. Coincidência incrível, quem está no salão, também acordado de madrugada? O pai! Finalmente os dois conversam, e temos um tremendo anti-clímax.
Em outro capítulo, a mãe de Olívia explica para ela o motivo do abandono de Rita, e infelizmente este é outro anti-clímax.
Essas revelações não tinham como não ser anti-climáticas, porque a autora coloca a si mesma numa armadilha ao ter que explicar comportamentos que são inexplicáveis. Se duas meninas adolescentes são melhores amigas durante anos, uma delas não vai deixar de falar com a outra de repente, sem nenhum motivo claro. Ainda se fossem dois homens, vá lá, mas duas mulheres? Vão deixar de explorar a questão verbalmente? Em que mundo?
Da mesma maneira, como justificar que um pai presente e carinhoso, um ótimo marido, de repente abandone a família sem mais nem menos, desapareça de um dia para o outro, destruindo as vidas daquelas que mais ama? E em vez de realmente sumir sem deixar rastro, decide ficar na região e abrir uma pousada na serra? O quê?
Os dois “mistérios”, responsáveis por fazer os leitores virarem as páginas, são mal ajambrados, com resoluções que não satisfazem. Ao abrir mão da verossimilhança em nome de plot twists baratos, ao criar situações que nunca poderiam ter solução satisfatória dentro dos parâmetros da própria história, a autora só poderia desapontar.
A linguagem se esforça para ser poética e está coalhada do tipo de frases aparentemente profundas que leitores facilmente impressionáveis gostam de deixar sublinhadas.
“Só as coisas desimportantes deveriam nos ocupar”
“Ninguém nunca nos ensina a rir da nossa falta de saída”
“A alma não se rende ao desespero sem haver esgotado todas as ilusões”
“Talvez os mortos estejam mortos”
“A vida não é de confiança, nos apunhala com a mesma faca com que passa manteiga”
“Aos domingos sentarei neste mesmo lugar e esperarei por você como se espera um oásis”. (Alguém espera oásis sentado?)
“O que realmente nos fere sempre envolve o que amamos”
“Em sabedoria cabe dor, cabe ria”.
“O dia seguinte não importa. Importa o resto da vida.”
“A morte é mais leve do que uma pluma. Já a responsabilidade de viver é mais pesada que uma montanha”
Fui me irritando com isso, e me surpreendi no final ao descobrir que várias dessas frases são na verdade tiradas, e às vezes adaptadas, de outras obras literárias. São nada menos de 30 desses citações, que deixam o texto meio estranho, torcido que foi para que elas se encaixassem.
Esse recurso mais ou menos se justifica pelo fato de Biá ser estudiosa de literatura. O leitor julgue se achou que valeu a pena.
Curiosamente, em pelo menos dois casos a adaptação prejudicou muito a citação.
A frase “sou cada pedaço infernal de mim”, de Clarice Lispector, aparece como “Já não bastasse sermos um pedaço infernal de nós mesmos.” Note a diferença entre “cada pedaço” e “um pedaço”. Dizer se que sou cada pedaço de mim é dizer, como Walt Whitman, “Eu sou amplo, contenho multidões”. Já dizer que nós somos um pedaço de nós mesmos não faz sentido.
A frase “O único dever é lutar ferozmente para introduzir, no tempo de cada dia, o máximo de eternidade”, de Guimarães Rosa, aparece como “Eu já não luto para introduzir no tempo de cada dia eternidades”. De novo, bem diferente. Uma coisa é introduzir “o máximo” de eternidade, o que denota uma tentativa, invariavelmente fracassada porém por isso mesmo digna, enquanto outra coisa é introduzir não só a eternidade, mas “eternidades” no plural.
Duas machadadas.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
“Aos domingos sentarei neste mesmo lugar e esperarei por você como se espera um oásis”. (Alguém espera oásis sentado?) - MISERICÓRDIA!
Suas críticas são aulas de escrita.