A Pediatra, 160 páginas, é da Cia. das Letras
A protagonista é a pediatra Cecília, que narra a história em primeira pessoa. Ela não se preocupa em angariar simpatia. Pelo contrário, mostra-se abertamente egoísta, arrogante e insensível, enfatizando inclusive que pouco se importa com seus pacientes, e nem sequer é uma médica muito dedicada.
preferi atender crianças com quadros autolimitados e corriqueiros. Todos os pediatras que conheço desejam o contrário, não estudaram tanto para tratar coceira, eles querem doença (…) dispenso a mãe quando a criança chega perto dos dois anos. Fico distante nas consultas e não retorno as chamadas até que os pais resolvam conhecer outro pediatra. A demanda nunca cessa, tem paciente para todo mundo
Logo no começo, ela se divorcia do marido e se torna amante de um homem casado, Celso, que é pai do Bruninho, bebê que Cecília atendeu como neonatologista.
Celso passou a dar consultoria em mais firmas na cidade, nos encontrávamos depois de suas reuniões, eu voltava para casa esfolada. Meu marido teve dias melhores com meu humor descarregado, leve, minhas dores se dissiparam. A cólica menstrual sumiu, também dispensei a pomada fungicida de uso constante, a região íntima estava uma nectarina
A região íntima estava uma nectarina! Não sei se entendi perfeitamente o que ela quer dizer, mas não importa. A imagem é insólita e sugestiva na medida certa para arrancar uma risada.
Acompanhamos o desenrolar da vida sexual e profissional dessa personagem, que não tem muito caráter mas é bem construída e bem narrada. A certa altura, um outro pediatra neonatal, praticante de métodos alternativos como parto domiciliar na presença de doula, surge como ameaça à sua carreira. Cecília não tem paciência com heterodoxias.
eu me vi alinhada aos planetas reais, submetidos às leis de Newton, e não aos astros da Mãe Prana visualizados num mapa medieval sem coordenadas visíveis, tentando localizar o rio onde a mulher natural parirá um sabiá
Em paralelo, temos também o problema da empregada de Cecília, que está grávida do próprio cunhado, Robson, segurança numa pizzaria ali perto.
Abri meu pacote da pizzaria, o pedaço frio deixou o presunto mais salgado, Robson devia comer todos os dias um pedaço daquele, levar o pacote para o extremo da zona sul, abrir com a esposa e os filhos, um deles tirado da escola para aprender a cortar cabelo num salão misto de criança, adulto e velho, enquanto a filha mais nova se faz saliente no portão, certeza que seus filhos eram adolescentes, Robson fecundando São Paulo desde os dezessete anos
O trecho acima traz uma característica marcante da obra, que é a tendência da narradora-personagem de devanear e imaginar cenários envolvendo os demais personagens. Ela não conhece a família de Robson, mas se permite extrapolar e imaginar como eles talvez sejam.
No trecho abaixo isso aparece novamente, quando ela está observando Bruninho, por quem se sente irracionalmente atraída, apesar de sua falta de conexão com crianças em geral:
pegou Bruninho no portão do Giuseppe. Ele ia subir e ver sua mãe drogada de hormônio, enfermiça, atolada na gestação sem saída, a baba ia esquentar sopa de feijão, enfiar a colher de adulto na boca da criança para engolir mais rápido, o metal batendo no dentinho
A atração de Cecília por Bruninho vai aumentando e ocupando cada vez mais espaço em sua vida, até o ponto de chamá-lo de filho e preparar uma enorme festa de aniversário sem convidados. O leitor acompanha essa estranha jornada de descolamento da realidade alternando antipatia com simpatia, pena com repulsa, compaixão com medo dessa protagonista marcante.
A obra reflete a realidade de um grupo bem específico de mulheres. É bem sucedida profissionalmente, mas não se sente muito recompensada pela profissão. Não tem amigas e seu casamento acabou. Está decidida a não ter filhos, porém descobre-se mais suscetível aos impulsos naturais do que imaginava. Nesse contexto, é estranho que em nenhum momento ela faça uso de redes sociais.
A crueza com que a autora expõe os defeitos de sua protagonista, ainda mais em primeira pessoa, e o senso de humor fazem a leitura ser cativante.
Nenhuma machadada.
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Eu adorei esse livro e fiquei com muita raiva da Cecília porque ela é imoral
Também adorei A Pediatra. Uma leitura fluida nos prende até o final. Cecília, a protagonista, é uma figura interessantíssima.