A Última Noite das Bicicletas, 281 páginas, é autopublicação
O livro começa com o enterro dos pais do jovem Lucas, que morreram atropelados, de forma trágica. O acidente interrompe a vida de Lucas e o deixa desorientado. Onze capítulos longos nos levam a diferentes momentos dessa vida, porém sempre durante a juventude do personagem ou início da vida adulta.
A narração, em primeira pessoa, é entremeada pelas memórias de Lucas. Essas memórias incluem várias histórias, vividas por ele, apenas narradas por ele ou contadas a ele por outras pessoas, de modo que o livro acaba se tornando também uma coleção de contos independentes. Para quem está acostumado a um romance linear, pode causar certa estranheza, uma sensação de que a leitura está sem rumo e não avança. É impossível resumir o livro sem falar de cada capítulo em separado. Mas são boas histórias, que devem ser apreciadas individualmente.
As bicicletas do título aparecem no segundo capítulo, quando um grupo de garotos faz um longo passeio. O protagonista é ciclista inveterado. “Quantos quilômetros eu tinha percorrido com aquela bicicleta desde o meu aniversário de treze anos? Centenas, milhares. Uma parcela considerável dos milhões de quilômetros que percorri depois.” Trata-se de uma Monark cor-de-rosa, do tipo mountain bike comum na década de 90, descrita com eloquência infantil:
Aquela bicicleta era de um rosa que doía nos olhos, fosforescente, como se ela tivesse uma fonte de luz dentro do quadro. Ela era visível a quilômetros de distância, poderia ser avistada pelos astronautas e pelos discos voadores do espaço sideral.
A história é um pouco desconexa. Por exemplo, a certa altura Lucas atende um telefonema ameaçador:
— Escuta — disse a voz —, eu quero deixar um recado pro dono da casa. O recado é o seguinte. Cuidado. Muito cuidado. As coisas não vão ficar como estão. As coisas vão mudar. E vão mudar pra pior. Eu não vou deixar por isso mesmo. Eu vou até o final. Eu sei onde vocês moram. Não vai sobrar pedra sobre pedra. Esse é o recado. Espero que tenha ficado bastante claro. Ficou claro?
Obviamente, o leitor espera que essa trama se desenvolva, quer sabe do que se trata. Mas isso não acontece. No terceiro capítulo, Lucas conhece alguém que realiza uma espécie de cura sobrenatural, extraordinária, mas isso também não é retomado.
Os deslocamentos de bicicleta são descritos com detalhes demais para o meu gosto. Talvez isso exerça alguma atração para quem conhece os locais, mas para o leitor genérico trechos como esses são só uma oportunidade de pensar em outra coisa e perder o fio da meada, o que é sempre um risco para o autor:
Passei pela sinaleira da Thomaz Flores. Meus braços começaram a formigar na nivelação irregular dos paralelepípedos. Voltei à calçada. No fim daquela quadra, de repente a calçada mergulhava, ficava dois metros mais baixa do que o nível da rua e passava pela janela baixa de um casarão antigo, um casarão dos tempos em que todas as fachadas eram erguidas no limite da calçada.
(…)
Nós dobramos a esquina redonda na frente do Estádio dos Plátanos, descemos duas quadras pela Gaspar Silveira Martins e dobramos a esquina redonda do início da Juca Werlang. Entramos deslizando pelo asfalto. A Juca Werlang subia imperceptivelmente por um trecho e depois subia de modo cada vez mais perceptível ao se transformar na rua Carlos Mauricio Werlang, na curva que era na verdade o fim ou início do chamado Acesso Grasel.
De resto, o livro é bem escrito. Tanto as narrações quanto as descrições e os diálogos (alguns deles bem engraçados) são bem feitos, e Rodrigo Breunig sabe casar realismo com um uso bastante seguro e criativo da linguagem.
As placas se aproximavam e se distanciavam do Uno branco da rádio a mais de cento e vinte quilômetros por hora. Nosso carro estava parado no espaço e o planeta rodava sob os pneus do carro. Depois dos pátios vazios das fábricas do bairro industrial de Eldorado do Sul, depois do terceiro cachorro atropelado e da placa indicando Argentina à direita, tomamos o caminho que levava à Argentina e avançamos mais devagar na direção oeste pela rodovia federal duzentos e noventa, forçando caminho contra o vento. O asfalto esburacado e remendado, planando no aterro acima das plantações alagadas, correu e se estendeu por dez minutos num traçado nivelado e totalmente reto. A estrada era mais alta do que tudo em volta. As raras casas ao longe não emitiam luz. Talvez não fossem casas. Nosso carro parecia perseguir ou empurrar um segmento iluminado da estrada, sempre o mesmo, no interior de um vácuo negro.
Não sei se o autor procurou editora e não encontrou. Se for esse o caso, é uma pena, porque este é um bom livro. Nenhuma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)