A União das Coreias, 148 páginas, é da Reformatório
Paulo é um homem jovem, que está terminando um mestrado em estudos literários enquanto trabalha numa repartição pública em Goiânia. O livro acompanha um dia na vida dele, do momento em que entra no trabalho, pela manhã, até ele voltar para casa no final do dia e sair para jantar com sua noiva, Duda.
Apesar de noivo, o tema que mais ocupa a cabeça de Paulo ao longo do dia é o caso que teve com uma outra moça, Rebecca. Aqui já temos o tema da divisão, da tensão entre dois polos, que evoca as Coreias do título.
Por outro lado, Paulo é negro e todos os seus colegas de trabalho são brancos, o que poderia fornecer outro abordagem possível do tema da divisão.
“Durante a infância e a adolescência, racismo para ele era coisa de filme americano, de nazista, Ku Klux Klan, skinhead, apenas se dava pelo ódio e pela violência física”
Mais tarde, ele descobriu que o racismo pode ser mais sutil, quando um amigo se recusa a usar o mesmo colete que ele na educação física, ou quando recusam sua participação numa apresentação de teatro da escola. Mas essa consciência, segundo ele, só veio quando fez um curso sobre literatura “de autoria preta feminina”, ou seja, Paulo vê a questão racial de um ponto de vista puramente intelectual. Tanto é assim que, quando Duda sugere que cotas só deveriam existir para alunos de escolas públicas (sendo portanto contrária às cotas puramente raciais), o que Paulo faz é dar a ela um livro sobre a “escravização” no Brasil (lamentavelmente o autor adota a novilíngua segundo a qual não se pode usar o termo “escravidão”, sabe-se lá por quê.) Seja como for, o tema racial só aparece rapidamente no começo para logo ser deixado de lado, e o leitor acaba até se esquecendo de que Paulo é negro.
Em vez da cor da pele, o autor enfatiza o fato de Paulo ser de esquerda e estar rodeado de bolsonaristas (o livro se passa em 2018, ano de eleição de Bolsonaro).
Como pode alguém ainda votar no PT depois dessa facada? O partido deveria ser extinto. Mas com a graça de Deus ele sobreviveu.
É a polarização política brasileira, entre esquerda e direita, que reflete a divisão entre as Coreias. O livro tenta trabalhar simultaneamente essas duas cisões: a social e a pessoal. Grosso modo, Paulo está indeciso entre Duda e Rebecca assim como o Brasil está indeciso entre Lula e Bolsonaro. Se você achou que essa premissa deixa um pouco a desejar, eu concordo.
ele tenta se lembrar se Duda alguma vez criticou o Trump, um deboche sequer, qualquer coisa sobre a pele Cheetos laranja, como a Rebecca gostava de chamá-lo, mas não vem nada na cabeça — e muitos defeitos ficam ocultos, de sobreaviso, porque política é tudo. Quem antagoniza politicamente, antagoniza em tudo.
Política é tudo? Definitivamente não é. Mas, se fosse, haveria que se demonstrar menos ingenuidade em relação a ela. O esquerdismo de Paulo é adolescente, é raso, é pouco mais que uma simpatia instintiva por slogans genéricos. E, como não poderia deixar de ser, a visão que ele tem da “direita” é igualmente simplória e fundada em chavões (“fascista”, “misógino”, “machista”).
A conexão pretendida com eventos políticos recentes é o ponto fraco do livro. Eles não influenciam a história que está sendo contada, e os personagens não têm insights interessantes sobre eles. Não há comunicação entre as esferas pública e privada, nem sequer no plano da metáfora. Estão ali para sugerir contemporaneidade, o que é dispensável.
Por outro lado, o drama pessoal de Paulo também carece um pouco de intensidade. Suas reflexões acontecem em meio a um dia banal. Ele precisa trabalhar, mas não se empenha muito; ele gostaria de ler os clássicos, mas não tem tempo; vai se casar com Duda, mas não tem muita certeza se a ama; apaixonou-se por Rebecca, mas não deu certo; também não se dá com os colegas. E assim ele vai levando.
O ponto forte é o manejo da narrativa. O livro é bem escrito. Luiz Gustavo Medeiros foge da banalidade formal e opta por misturar o monólogo interno de Paulo com as cenas das quais ele se lembra e com os acontecimentos correntes no ambiente de trabalho, passando constantemente de um registro a outro, de um tempo a outro, de primeira para terceira pessoa, criando assim uma narrativa quase desconexa, multifacetada, recurso que a meu ver é mais interessante literariamente do que o tantas vezes indigesto fluxo de consciência.
Fez o pedido no estacionamento do Goiânia Shopping, na T-10, parece fórmula química, diz ao percorrer o corredor, um falsete contido, depois do filme, dentro do carro (…) e ele instantaneamente recorda dos anéis de coco que comprou de um vendedor ambulante que o abordou no Matuto, no quinto encontro com Rebecca, compra um anel para a moça, e ela riu (…) Um dia peço a Rebecca em casamento com esses mesmo anéis nesse mesmo bar, planejou de improviso, ainda se deliciando com aquele ciúme, e se sentiu o último romântico, dentre todos os canalhas, diz baixinho ao reclinar a poltrona, entre o autodesprezo e a autoindulgência, enquanto Rebecca desviava o olhar. A chefe diria que ele poderia ter caprichado mais, querendo na verdade falar: pelo visto, Paulo, a displicência também afeta sua vida pessoal
um romance não precisa de um desfecho triunfal, se concentra no devaneio enquanto acompanha a descida do elevador, andar a andar, não precisa de um grande evento ou de esclarecimento, um romance não precisa unir as Coreias, frase boa para deixar o leitor em dúvida, insinuar um ponto cego, abrir uma fenda para a fuga da compreensão (…) porque a vida se mostra mais interessante é no esboço de um fracasso, naquilo que mesmo fraturado continua, ainda que muitas vezes se escreva para esconder ranhuras, juntar cacos, aparar arestas, ligar penhascos
Muito bom na forma, nem tanto no conteúdo. Uma machadada.
(lembrando que por aqui é assim: livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
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Uma machadada para mim se traduz: tem futuro esse autor, acompanhemos os próximos passos (y)