A Vida Futura, 163 páginas, é da Cia. das Letras
Preocupados com o fato de que suas obras passarão por uma revisão para ficarem mais acessíveis, José de Alencar e Machado de Assis (narrador da história), denominados Jota e Jota, voltam da morte no intuito de tirar satisfações com a professora de literatura responsável pelo projeto.
Ao visitarem a universidade, Machado sente-se atraído por uma aluna, Mariana, que é quem os leva até a professora, Stella. Entretanto, Alencar vê-se misteriosamente preso ao corpo do namorado de Stella (segundo Machado, é porque os dois são, ou ficaram traumatizados ao verem-se como, “cornos”).
Separado do amigo, Machado narra um pouco da vida de Stella e seu namorado, e de Mariana e sua família. A história sugere que o projeto de reedição simplificada das obras dos dois pode fazer parte de algum esquema escuso, mas é tudo muito nebuloso. Na última parte do livro os acontecimentos parecem se suceder de forma meio aleatória e a viagem acaba sem mais nem menos.
Sérgio Rodrigues emula o vocabulário e o estilo machadiano ao longo da narrativa, a meu ver com bom humor na medida certa (“uma vez iniciado tal curso de elucubrações, o caminho até a loucura era livre e desobstruído como um trecho de linha férrea”; “o pensamento, visto de frente, era cômico e me arrancou um sorriso; mas seu rabo era melancólico”) e pleno sucesso. Os capítulos são numerados com algarismos romanos e têm títulos espirituosos, o que sempre me agrada. O narrador fala diretamente com o leitor, como gostava de fazer o mestre.
Os títulos dos capítulos são bem articulados com o texto. Por exemplo, o capítulo III termina assim: “Caía a noite. Deixei Jota e os ilustres romancistas às voltas com seus demônios e me abanquei numa beira de cúmulo para meditar”. E o capítulo IV se chama “Meditação numa beira de cúmulo”.
Os dois Jotas começam a história no céu dos escritores, e encontramos por lá Camões, Cervantes, Shakespeare, até Nelson Rodrigues, que pede a Machado que lhe traga um Chicabom do mundo dos vivos. Essas passagens são bem divertidas, e o autor deixa várias referências meio cifradas para o leitor tentar descobrir de quem ele está falando.
O choque dos dois oitocentistas ao chegar no Rio de Janeiro atual é enorme, como seria de se esperar, e Rodrigues aproveita para dar voz à revolta que qualquer um sente ao se deparar com a sujeira, a depredação, a degradação e a violência que podem grassar pela noite de uma metrópole brasileira.
continuo a amar reticências, mas aprendi que muitas vezes a lucidez post mortem não se contenta com menos que… tudo. E houve mais, muito mais, que prefiro calar. Basta o que talvez devesse ter calado também, mas deixei aqui escrito. O senso de irrealidade que dava a nossos passos um peso incerto de algodão ou chumbo fazia com que nos sentíssemos alternadamente numa masmorra medieval, no porão de um navio negreiro, numa caverna pré-histórica, num campo de batalha napoleônica após tétrica carnificina, na própria caldeira fervente de Asmodeu.
Alencar conclui: “Jota, é tanta sordidez. Nosso fracasso é retumbante. Império, República, tudo deu em nada!”
Rodrigues traz à baila com bastante humor algumas questões contemporâneas ligadas à literatura, como o lugar de fala, o identitarismo, o politicamente correto. O grupo encarregado de reescrever sua obra (aliás, o projeto se chama “Luta de Clássicos”, o que me valeu uma sonora risada) tenta lidar com a frase final de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Encontram ofensas e gatilhos por toda parte e tratam de deixar a lendária construção mais palatável, saindo-se com esta palhaçada: “Não tive a oportunidade de ter filhos, não transmiti a nenhuma criatura a herança de nossas modestas aquisições, mas estou pensando em adotar um”.
A certa altura, os Jotas ouvem um grupo discutindo a possibilidade de autores brancos e héteros compreenderem e narrarem a vida de personagens diferentes deles. Nesse contexto, os jovens comentam que Machado era negro. Esse assunto rende um pouco, mas acho que poderia render mais, principalmente depois que Alencar pergunta: “Eles acham que você é negro. Você é negro, Jota?”. Mas o autor se furta a apresentar a resposta, preferindo deslocar a narrativa de supetão.
Como “narrador onisciente” da história, Machado consegue penetrar a alma dos outros personagens, para narrá-los. Com exceção de Mariana. Ela e somente ela lhe é opaca. Achei que Rodrigues fosse relacionar isso à suposta questão do lugar de fala (o autor oitocentista hétero não consegue narrar a moça não-binária do século XXI) e trazer alguma reflexão sobre o assunto, mas infelizmente isso não acontece. Machado não consegue ler Mariana, mas consegue ler sua irmã, é assim e pronto, sem explicação.
O livro vai ótimo pelos primeiros três quartos, até o capítulo XL, mais ou menos. A partir daí, a história se perde. Topamos com a família de Mariana, com um tal Misael, com um tal Beto Ferrão, algumas tramas são esboçadas mas não são desenvolvidas. Sabe-se lá o que foi feito de Alencar, sumiu. Machado parece que está bêbado nos últimos capítulos, mas mesmo isso não fica claro. A cena sobre a reescrita de Brás Cubas aparece jogada ali no meio.
O estilo é ótimo e a emulação de Machado se sai muito bem. O livro é bem escrito e divertido, o choque dos escritores com a realidade e com certos discursos de hoje é convincente. A história em si é meio chocha; até começa bem, mas se perde totalmente no final. Por causa disso, uma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
A idéia do livro é muito boa. Chama a atenção, pelo menos.