As Pequenas Chances, 210 páginas, é da editora Todavia.
O livro é dividido em três partes, mas na verdade ele tem duas partes.
A primeira parte é a história da morte do pai da narradora, contada alternando o ponto de vista dela e o da irmã, e de um encontro dela, tempos depois, com o médico paliativista que o atendeu.
A segunda parte narra uma viagem que ela faz pela região da Bessarábia, atrás de um pouco da história das raízes judaicas da sua família.
Cada uma dessas partes é composta de vários capítulos curtos e ocupa quase exatamente metade do livro.
A primeira parte é muito emotiva e bem escrita, com vários momentos tocantes. Até eu, que sou um cara de casca grossa, cheguei a ficar emocionado. Timerman sabe dosar uma linguagem lírica com atenção aos detalhes, produzindo cenas belas que evitam o sentimentalismo barato.
A mulher enterrada à direita do meu pai havia falecido um mês e dois dias antes. Poucos minutos depois da nossa chegada, aproximou-se um senhor, andando com toda a rapidez que seu corpo lento permitia, sustentando os próprios passos em uma bengala. Na outra mão, trazia um vaso de flores brancas, que tentou colocar ao lado do túmulo da mulher. Ele largou a bengala na grama, mas não conseguia se abaixar.
Nessa linda passagem, temos o contraste da morte recente do pai dela e da outra mulher com a idade avançada do senhor que chega, as flores com a grama do cemitério, a dificuldade que o senhor tem de se abaixar com as dificuldades físicas que o pai dela deixara para trás há pouco tempo, e finalmente a imagem da bengala largada na grama, evocando uma pá. Ótimo.
começou a por delicadamente na boca do nosso pai as pequenas esferas alaranjadas, que ele saboreava, e gostava, e pedia mais (…) até que ele não quis mais comer, e disse para nós: “não me apaguem, tá bom?”, querendo dizer para que não o deixássemos ser sedado, e se deitou, e disse que nos amava, e dormiu (…) Guardamos até hoje, numa prateleira da cozinha, junto dos temperos, das coisas dos dias comuns, o potinho da última coisa que meu pai comeu.
Fazendo vista grossa à infeliz repetição da palavra “coisa” no final, eis aí outra ótima passagem, que ressalta o apego do pai às pequenas satisfações da vida, mesmo no final, e como a lembrança de um ente querido pode ser evocada por objetos triviais, mesmo muito tempo depois de ele ter partido.
As cenas em que a narradora encontra o médico que cuidou de seu pai também são boas. Encontrar, num ambiente informal e deslocado, alguém que compartilhou tanta intimidade é embaraçoso, é difícil, e isso transparece no texto.
Enquanto a primeira parte é voltada principalmente para dentro dos personagens, a segunda parte é voltada para fora. Trata-se da descrição de uma viagem, que assume às vezes uma linguagem de guia turístico. A autora passa a estar preocupada com o ano em que certa sinagoga foi construída, o nome de determinado rio, a distância exata entre a cidade tal e a cidade qual.
A qualidade da prosa cai sensivelmente, lembrando o narrador de um documentário.
Encerradas as perseguições inquisitoriais, da Idade Média, a comunidade judaica começou a se expandir na Europa, e alguns países passaram a dar incentivos para que os judeus ocupassem territórios de baixa densidade populacional e ajudassem, assim, garantir as novas fronteiras e a formar cidades.
Mas nem sempre existiram cemitérios. Em outros tempos da humanidade, as pessoas já foram enterradas em túmulos isolados, para um único indivíduo ou uma única família, ou em sarcófagos, ou mesmo em pirâmides, no Egito, ou em grutas.
Trechos como esses talvez fossem interessantes, se estivéssemos lendo um livro de história. Mas é um romance, aliás um romance com uma primeira parte emocionalmente intensa. E essa intensidade simplesmente desaparece.
Mesmo as partes com um ponto de vista pessoal soam distantes. Aqui temos um parágrafo que poderia estar numa redação escolar:
Tomamos um lanche em um café no caminho de volta para o hotel. Ainda está claro quando decidimos terminar o dia em Cricova, a cidade subterrânea de vinhos, a vinte minutos de carro da capital, com suas labirínticas passagens cujas paredes se assemelham a colmeias, cada favo correspondendo a uma garrafa de vinho. Todos ficamos impressionados.
Nas últimas páginas, parece que uma chave é virada e busca-se retomar o drama, com a descrição de um parto. A narradora assume o nome da autora do livro, então fica a sugestão de que o episódio seja autobiográfico. Com certeza é bem realista. Pessoalmente, eu me senti como se estivesse espiando indevidamente um momento que deveria ser íntimo. A autora quis fechar um livro sobre morte narrando um nascimento, é compreensível, ainda que beire um pouco o clichê.
Se o livro consistisse somente na primeira metade, eu não daria nenhuma machadada, pois essa parte está muito bem feita. Mas a segunda metade não está no mesmo nível, e não acho que a composição das duas funcione a contento. Depois de um trabalho literário de qualidade e alta carga emocional, passamos de repente a um relato de viagem simples e apagado.
Uma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)