Ébano Sobre os Canaviais, 240 páginas, é da José Olympio.
José vem de Portugal para o Brasil ainda muito jovem, na época do Império. É adotado no Recife, estuda e se torna caixeiro viajante. Apaixona-se e se casa com a escrava alforriada Ébano e vão morar numa vila, mas a sociedade da vila não aceita bem o casamento e Ébano abandona o marido e o filho. Anos mais tarde, José se envolve com a filha de uma baronesa e termina seus dias como um rico comerciante.
No século XXI, Maria Antonieta acredita ser descendente de uma baronesa e de José, mas trilha uma jornada de autoconhecimento que lhe revela que sua verdadeira antepassada é Ébano.
A premissa do livro é interessante. Uma brasileira branca, preconceituosa, descobre ser descendente de escravos. Junto com ela, o leitor acompanha a história desses escravos. O livro ganhou o prêmio Kindle de 2022.
Infelizmente, de boas intenções literárias o inferno literário está cheio. A dificuldade de escrever um bom romance não está na premissa, mas na execução. É preciso criar bons personagens, gerar a ilusão do realismo (se a ideia for essa), trazer drama às cenas, usar a linguagem com certa destreza. Tudo isso ficou faltando neste caso.
O livro é muito bem intencionado. Quer “denunciar” o racismo e o machismo e acaba sendo didático e simplório. A narração chega a oferecer comentários, como aqui:
Mesmo que soubesse no fundo, no fundo, que o motivo da prosperidade fora o empenho da mulher, ele não reconheceria isso jamais, em hipótese alguma. As láureas eram sempre dos homens e continuariam a ser.
Os personagens bons são anjos. Conhecemos uma parteira, alma caridosa, que trabalha para negros de graça. Infelizmente, “Não conseguiria ingressar em nenhuma faculdade de medicina porque não se permitia a entrada de mulheres”. Não diga.
Já os personagens maus são horríveis. O racismo de Maria Antonieta é uma caricatura. Ela e o marido se encontram com a empregada, que quer falar alguma coisa com eles. A reação dela:
— Me livra dessa, me livra!
— Vou falar rapidinho… É que estou precisando de uma grana.
— Já começou… É assim, né? Primeiro um dedo, depois a mão, e por último o corpo inteiro.
(Quem pediria “uma grana” ao patrão, em vez de “uma ajuda”, “um adiantamento”?)
Logo depois temos outra cena. Maria Antonieta vê o marido conversando com a empregada de uns amigos.
— O que você está fazendo aí com essa…
(...)
— Trocar-me por uma neguinha dessas? Que falta de gosto!
Mais algumas páginas, e o marido vai beber água. Mas ele pega o copo da empregada.
— Esqueceu? Nossos copos são os outros.
Certo. Ficou claro. Mas ainda somos informados sobre a “rotina” de Maria Antonieta: “Acordava tarde, bem tarde. Ia à massagista, à manicure, ao pedicuro e ao cabeleireiro”. Nossa, tudo isso num dia? Mas como ela é fútil, hein? Perceberam como ela é fútil, leitores?
Os personagens estão sempre explicando a trama uns aos outros
— A Missão Pedro Ferreira de Oliveira não foi cumprida. Desde 1855, nossos navios não trafegam nas águas do rio Paraná.
— Sim, o Paraguai não está cumprindo o tratado, e os rios Paraná e Paraguai continuam sendo trafegados por embarcações exclusivamente paraguaias.
A escrava Shakina é estuprada. O momento deveria ser dramático. Mas eis o que lemos:
Enquanto o chefe a dominava, as lágrimas caíam sem escândalo. Sentiu profundamente, afinal queria se casar com Chisulo e seguir a tradição.
A mulher está sendo estuprada e sua única preocupação é com o casamento e a tradição. Se esse livro fosse escrito por um homem, seria chamado de machista e conservador.
A linguagem é usada de forma simplória. Parece um livro infanto-juvenil dos mais condescendentes (ainda por cima, adere ao modismo tolo de usar “escravizados” em vez de “escravos”, como se isso fizesse alguma diferença). Os diálogos lembram novelas de televisão.
Aqui, uma negra alforriada vai contar para a mãe, negra escrava, que pretende se casar com um branco. Momento dramático, certo? Errado.
— Tem certeza?
— Sim. Claro que tenho.
— Oia lá. Ele é branco, tu é preta.
— Somos livres.
— Desejo o melhor pra tu, fia.
Aqui, um casamento vai terminar por casa do preconceito. Uma mãe vai abandonar o filho. Momento dramático, certo? Errado de novo.
— Vou te deixar com nosso José. Para o bem dele. Senão, ele sempre será filho de escrava. A alforria não me vale de nada nesta vila miúda
(…)
— Não concordo. E nosso amor, fica onde?
— Impossível nosso amor, José. Não vês? Continuaremos nos amando de outra forma, a distância.
— Como venceremos tanto preconceito?
Eu não sei como venceremos o preconceito, mas não vai ser escrevendo livros como esse.
O júri do prêmio Kindle cochilou nessa. Três machadadas.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
"Infelizmente, de boas intenções literárias o inferno literário está cheio. A dificuldade de escrever um bom romance não está na premissa, mas na execução." foi preciso e assertivo. Parabéns pela resenha.
Eu comecei a ler este livro, justo curiosa pela premissa e por ser (na época) finalista do Prêmio kindle. Eu era escritora iniciante e tentava me aprimorar olhando os demais. Notei logo algumas falhas que aprendemos a evitar em cursos e oficinas: descrição de cenários de forma pobre e um tom semi- panfletário. O livro não é de todo ruim, mas abandonei no caminho, não me segurou. Não seria tão dura e daria todas as machadadas, mas realmente o prêmio kindle me pareceu nesta época, mais tendencioso que outra coisa.