Nada de Novo é um manuscrito inédito, no qual Sadraque Regis conta parte da história de Lampião e Maria Bonita, de forma extremamente polifônica.
Múltiplas vozes se alternam, trazendo diferentes pontos de vista e registros linguísticos, engolfando o leitor num redemunho literário que celebra não só o legado de Guimarães Rosa mas todo um rol de influências vanguardistas como Faulkner e Lobo Antunes, entre outros. O resultado é uma prosa idiossincrática e original, bastante evocativa.
Voos de garças-brancas como formas de cera de sol derretida farfalhavam e gorjeavam e sombreavam o chão e passavam e se perdiam na paisagem e no chão corrupiões com suas barrigas de fogo cantavam e bicavam sobre os trechos de mato emaranhado distantes uns dos outros mosqueando o chão e levantavam as asas quando nos viam chegar e chilreavam e manquitolavam mas não voavam e mais nenhuma ave apareceu exceto os urubus e filhotes depenados vomitaram a comida regurgitada do papo dos pais quando nos viram, um líquido fétido e viscoso e da cor do nojo.
Maria busca seu espelho, apruma a alça do vestido com uma puxadela, os pequeninos dedos picados por esvoaçantes pernilongos dourados. ensombrecidas pálpebras embrumadas, maçãs grená arrebicadas, lábios acesos escarlate. uma pesada colher de madeira, um lindo trabalho esculpido à mão, e no topo o brasão de cuja família fora roubada jaz riscado. o prato de pau-d’arco dourado sulcado por lascas e riscos marcados com a fúria da fome, sobras de escuras bananas compridas requentadas.
As vozes narradoras incluem a própria Maria Bonita, uma outra moça, também chamada Maria, que faz parte do bando de Lampião, o cangaceiro conhecido como Candeeiro, o líder de um grupo de ex-escravos que se denomina Leviatã. Essas vozes nos contam, a partir de diferentes perspectivas, a história dessas personagens lendárias, revelando seu cotidiano, suas opiniões e suas intimidades. O autor ainda arrisca ao incorporar como narradores algumas figuras pouco ortodoxas, como animais, plantas e até o Sol. Aqui, por exemplo, um pé de cana-de-açúcar se manifesta:
A noite tinha avançado uma hora quando eles voltaram e um lampião foi deixado no meu pé esquentando minhas folhas na noite fria e com enxadas e pás e picaretas começaram a cavar bem ao meu lado e a enxada derrubou o lampião e levou metade de minhas lâminas é lenha uma coisa dessas não é não e os homens chamaram ao enxadeiro de desastrado e o enxadeiro disse ter visto a alma do cacique sumido vagando lá distante na mata de quatro como um lobisomem e homens confabularam seus medos e tudo mais cheirava a sal até que um corpo humano foi jogado e coberto por terra e eles foram embora e muita terra sobrou porque pesava mais agora de meu lado e um aroma salgado inebriava o ar e penetrava a terra e pela manhã eles todos passaram por cima de mim indo embora em fila indiana e um cheiro de sal jazia impregnado no calçado deles.
As forças policiais também comparecem, na forma de diálogos entre dois membros da chamada “volante” (chamados de “macacos” pelos cangaceiros). Esses diálogos são bem humorados:
“Agora me diga, soldado, por que Judas era um imbecil completo.”
“Oxe, essa é fácil. Porque traiu o maior homem de todos. Mande agora uma pergunta difícil, sargento”
“Assim você é quem se mostra um imbecil, soldado, ainda que não seja completo. Primeiro que nunca foi registrada a altura de Nosso Senhor, nem mesmo apocrifamente. Embora eu suponha um metro e noventa ou até mais, porque o homem era bonito. Segundo que trair não faz de ninguém um imbecil. Brutos traiu a César e não consta que ele tenha sido um imbecil.”
Além do Leviatã, o livro é carregado de outras referências bíblicas e discussões teológicas, acompanhadas de menções eruditas que mobilizam elementos culturais à primeira vistas bastante removidos do universo sertanejo, como os deuses gregos, Nabucodonosor, Molly Bloom, o Corcunda de Notre Dame, Freud, Chaucer e Shakespeare. O autor traz assim o cangaço, com suas histórias de violência e vingança, com toda a proximidade que tem com a terra e a natureza, e sua própria produção para dentro da tradição literária.
Nada de Novo é uma obra singular, com um tema profundamente brasileiro e trabalhada com o esmero literário de quem tem um projeto estético autoral e está capacitado a desenvolvê-lo. Trata-se de um livro que sem dúvida merece ser publicado.
Nenhuma machadada.
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Que texto vertiginoso o desse livro! Alô, editoras! Olhem aí um bom livro para editar.
Anotado para leituras futuras