O Céu Para os Bastardos, 176 páginas, é da editora Todavia
Maria Expedicionária, Sá Narinha, conta parte de sua vida enquanto passa o tempo no velório de um vizinho.
Umas das principais características do livro é que não tem um enredo propriamente dito. É uma colagem de inúmeros causos, cenas, eventos. Em vez de um romance, está mais para uma fileira de microcontos. A leitura me lembrou a experiência de ouvir o jornal local enquanto cozinho: acidente de trânsito no bairro tal, não houve feridos; cachorro atacou criança, ela está internada em estado grave; homem tentou roubar barraca de feira mas foi detido, levado à delegacia e liberado em seguida; ônibus quebrou não sei onde, passageiros ficaram a pé; etc. Nomes de personagem se sucedem de forma avassaladora, a certa altura desisti de tentar lembrar quem era quem.
Falta uma história central que o leitor possa acompanhar mais de perto. Quer dizer, há essa história, e é boa, ótima mesmo, mas ocupa pouco espaço, não é explorada a fundo e acaba perdendo força. Em compensação, a profusão de causos monta um painel multifacetado da vida em Fim-do-Mundo, o bem nomeado bairro onde vive a protagonista narradora. Nessas historietas pulsa o Brasil. Os personagens pulam da página. O intenso realismo é o forte do livro.
Com exceção da fala dos personagens. A fala não é realista, é inconsistente.
Crianças moradoras da periferia, pobres, estão brincando e falando como crianças, mas a certa altura uma diz: “Todo mundo morre um dia, sua boba! E, sendo assim, é melhor ir pro céu.” Criança que usa “sendo assim”?
Da mesma forma, adultos reclamam da falta de infraestrutura de transportes. Na linguagem deles. Até que uma explica que seria preciso “arquitetar elevações para aliviar o fluxo” e que uma engenheira numa palestra “enfatizou que certo mesmo seria esticar a malha ferroviária”. Mesma coisa quando estão reclamando dos assaltos. A região não é segura. Roubaram um homem que era muito econômico, privava-se até mesmo de biscoitos que precisaria para “reconstituir as taxas de glicose”.
Esse é o léxico da periferia?
A narradora, claro, é também muito pobre e sem instrução. Diz amar livros, mas não fica claro onde teria contato com eles (em todas as memórias que ela desfia ao longo das páginas, nunca aparecem livros). Apesar da educação precária, usa palavras como “convívio conjugal”, “quadragésimo”, “manusear”, “venerável”, “anomalia”, “inatingível”, “inquirido”, “incumbência”. Curiosamente, ela sabe o que é anemia falciforme, mas quando vai falar do muito mais conhecido mal de Alzheimer, se expressa de forma pitoresca: “Sei que existe uma doença que some com as lembranças da gente. Deve ser algum bicho que se aloja na cabeça e devora as recordações”. Parece que a autora buscou aí um momento “quarto de despejo” (obra que ela com certeza leu).
O tempo verbal tem hora que fica confuso. No parágrafo abaixo, verbos no passado e no presente se embaralham:
O ambiente, que já ia descontraído, tornou-se denso com a chegada de Doroteia, carregada pelos braços por Bolão e rodeada das manas. Dinorá, ao observar a desolação das irmãs, sobretudo de Teteia, a quem é mais apegada, iniciou um pranto dolorido. Geme como se estivesse sentindo a dor de todas elas. Estava vestida com um traje horroroso. Caberia um exército dentro da túnica de tecido áspero. É espantoso vê-la nessa condição. Teteia e Dolorinha procuraram mantê-la ajeitada e gozando de algum asseio, mas, obviamente, não tiveram como alcançar essa parte em meio a tantas questões. Além de tudo o entendimento de Dinorá não alcança o que está acontecendo. Ela se aproxima das velas a todo momento e alguém precisa correr para afastá-la.
A personagem da patroa da protagonista é esquemática ao extremo. Controla o que a funcionária come, coloca uma lâmpada fraca no quarto de empregada para economizar energia, fica feliz ao saber que no chuveiro do banheiro de empregada sai pouca água. Confisca até o vaso de plantas que a moça tira do lixo. Vilã de desenho animado, mesmo. Mas não descarto que existam de fato patroas assim. Aliás, posso apostar que existem, infelizmente.
Resumindo: Um bom retrato do Brasil no Fim-do-Mundo, com a vida da maioria da população brasileira (compare com as preocupações tão classe-média de Ricardo Lísias em Uma Dor Perfeita, já resenhado). No geral, bem escrito, com bons personagens. A história principal podia ter mais corpo, a linguagem podia ter mais consistência.
Uma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)