Achei que faria sentido começar esta newsletter de crítica literária sincera com o livro do meu xará, Samir Machado de Machado. Só pela coincidência, mesmo.
O Crime do Bom Nazista, 135 páginas, é da editora Todavia.
A história se passa em 1933, ano no qual, todo mundo sabe, o partido nazista subiu ao poder na Alemanha e Adolf Hitler se tornou chanceler.
A bordo de um Zepelim que está indo do Recife ao Rio de Janeiro, especificamente o LZ 127 Graf Zeppelin mostrado nas fotos abaixo, ocorre um assassinato.
A ambientação é feita com cuidado pelo autor, com direito a reprodução do cardápio do jantar em alemão, menção a fatos e figuras públicas (a maioria alemãs, mas o eugenista brasileiro Renato Kehl é mencionado), assim como jornais e revistas da época.
Porém, um detalhe parece ter passado despercebido: a história do livro se passa em 1933, mas a certa altura menciona a Noite das Longas Facas, que aconteceu em 1934.
Há ainda outros pontos ao longo da narrativa que causam estranheza.
Por exemplo, um personagem comenta sobre a Primeira Guerra Mundial: “Ouvi dizer que os bombardeios de dirigíveis sobre Londres foram terríveis”. Não me parece que esse tema fosse algo que um alemão saberia de “ouvir dizer”. Seria algo tratado como fato, amplamente divulgado.
Depois, outro personagem explica que certo editor
publicava uma excelente revista para lésbicas também, Die Freundin, “a amiga”. E a Das dritte geschlecht, “o terceiro sexo”, para travestis.
Por que alguém que está falando com alemães iria traduzir os títulos que estão em alemão? Para benefício do brasileiro que está lendo O Crime do Bom Nazista, é claro. Compreensível, mas um pouco esquisito.
Curiosamente, surge de repente uma citação do filme Blade Runner! Sim, Samir Machado de Machado, eu peguei essa referência. Cadê o meu prêmio?
A trama de O Crime do Bom Nazista gira em torno da investigação, há que se descobrir quem matou a vítima, o famoso whodunit?
Somente três personagens tiveram oportunidade de cometer o crime, a baronesa Fridegunde van Hattem, o doutor Karl Kass Vöegler, ambos alemães, e o senhor William Hay, inglês. A investigação fica a cargo do policial Bruno Brückner.
Infelizmente, e esse é o primeiro grande defeito do livro, não é possível construir, explorar e resolver um mistério de verdade, um mistério misterioso, em 120 páginas. Depois que o crime é descoberto, o detetive interroga os três suspeitos e depois temos a resolução.
É rápido demais, não há pistas, não há desvios, não há surpresas, e não há profundidade alguma nos personagens, que não passam de tipos.
Machado de Machado conhece a literatura de mistério e sabe que não é assim que se faz. Mas seus dois lançamentos anteriores, Homens Cordiais e Tupinilândia, somam mais de 900 páginas, então talvez ele estivesse cansado.
Não é segredo que o tema do nazismo foi escolhido para fazer um paralelo com o bolsonarismo brasileiro. O tema do preconceito contra homossexuais, por exemplo, atravessa o livro e talvez seja seu melhor aspecto.
O paralelo ficou forçado quando o tema das “correntes do zap” foi ironizado na fala de uma personagem: “minha amiga Gertrud escutou de um primo que soube por alguém que conhecia um oficial…” Até a frase “Alemanha, ame-a ou deixe-a” comparece. Mas considero essas forçadas de barra liberdades desculpáveis.
Nazistas e bolsonaristas têm em comum o ódio aos comunistas. Até aí, tudo bem. A coisa fica estranha quando, como contraponto, os comunistas são mostrados sob luz excessivamente positiva. Não só uma, mas duas vezes ao longo do livro o comunismo é caracterizado como uma corrente política que defende “uma sociedade em que todos sejam tratados como iguais”. Essa visão ignorante e ingênua não se justifica hoje e muito menos faz sentido na boca de um nazista dos anos 30.
A visão contrária é articulada, de forma caricata e didática, pela grã-fina:
Afinal, se todos fossem iguais, qual seria a utilidade de ter muito dinheiro? Quanto mais coisas se tem, mais os desejos e anseios vão mudando e aumentando a cada dia (…) Bom mesmo é possuir coisas exclusivas, a que só nós temos acesso. Se todos têm acesso a esses prazeres, eles passam a não ter mais graça.
[Nota: Samir Machado de Machado esclareceu que esse trecho foi tirado por ele de uma entrevista de Danuza Leão publicada na Folha de S. Paulo em 2012. Essa referência eu não tinha pegado.]
Os maus, meus adversários políticos, são consumistas, egoístas, hedonistas, imbecis. A minha turma, os bons, são generosos, empáticos, mente aberta, querem uma sociedade em que todos sejam tratados como iguais. Desse tipo de maniqueísmo não se tira boa literatura (o fato de que comunistas também tinham preconceito com homossexuais e acusavam os nazistas de serem enrustidos não é mencionado).
O título do livro fica explicado na última frase:
Até o fim de seus dias ele nunca sentiria culpa [por] ter feito com que Otto Klein se tornasse, enfim, um bom nazista, do único modo concebível que um nazista possa ser bom: estando morto.
A passagem me lembrou o final de um discurso do professor Mauro Iasi, que pode ser encontrado no YouTube, no qual esse infeliz praticante do “ódio do bem” parafraseou um poema de Brecht:
Nós sabemos que você é nosso inimigo, mas considerando que você, como afirma, é uma boa pessoa, nós estamos dispostos a oferecer a você o seguinte: um bom paredão, onde vamos colocá-lo na frente de uma boa espingarda, com uma boa bala e vamos oferecer, depois de uma boa pá, uma boa cova.
Enfim, nazista bom é nazista morto. Quem poderá discordar? Um fascista é quase um nazista, então fascista bom é fascista morto, também. E um bolsonarista é quase um fascista (quase?), então…
O livro é bem escrito, no nível da linguagem. O plot twist é razoável. Mas vou dar a ele duas machadadas. Uma por ser um livro de mistério praticamente sem mistério, outra pelo esquematismo dos personagens e da história.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)