Eu talvez preferisse não resenhar em sequência dois romances com “O Crime” no título, mas Luiz Biajoni ofereceu sua obra para análise e eu, naturalmente, aceitei.
O Crime no Edifício Giallo, 170 páginas, é da editora Rua do Sabão.
John e a esposa, Carol, moram com a filha dele, Gina, no apartamento 121 do Edifício Giallo. No apartamento 11 mora o pai de Carol, Edmundo, e no 122 mora um sujeito chamado Carlo. Alguns outros moradores são mencionados, mas sem destaque.
Os nomes dos personagens causam estranheza já de início. John, Frank Lacalle, Roland Kerr, Jen Seller, Christian Pete, Carlisle, Hal Marduk? Que diabos de nomes são esses? Cheguei a ficar na dúvida se a história se passava mesmo no Brasil. Consultei alguns deles no Google para checar se eram alguma citação a personagens de outras obras, mas não achei nada. Se forem citações, o autor podia ter feito um esforço para traduzi-los um pouco.
O tal Carlo está incomodando o prédio ao dar festas com “gargalhadas, alguns gritos, e até barulhos que sugeriam sexo e orgias”. Somos informados também que ele incomodava por ser negro e gay em meio a moradores brancos e héteros, mas isso é só afirmado pelo narrador e não é mostrado na história (esse problema perpassa todo o livro, como veremos).
Carlo aparece morto certo dia. A investigação fica a cargo da policial Nanete, que por coincidência namora Pete, um dos moradores.
Os capítulos têm títulos, prática meio esquecida mas que me agrada.
Tratemos primeiro do enredo. É uma história de mistério tradicional [Nota: Biajoni esclareceu que não é um mistério tradicional, e sim uma história que busca se ater às tradições específicas do gênero giallo]. Ficamos sabendo as personalidades dos personagens, suas idas e vindas, suas motivações, um pouco sobre suas vidas e no final será revelada a identidade do assassino.
Em contraste com o livro que resenhei anteriormente, O Crime do Bom Nazista, aqui os personagens têm alguma profundidade. Acompanhamos as sessões de análise de John, as ansiedades de sua esposa e sua filha, um pouco do passado de Edmundo.
Entretanto, as caracterizações são um pouco preguiçosas e esquemáticas. Sobre Carol, por exemplo, é dito que “participava de duas organizações não-governamentais, uma de linha pacifista e outra que arrecadava fundos e alimentos para pessoas necessitadas”. ONG pacifista, no Brasil? Mal temos exército… “Pessoas necessitadas” é meio vago. Seria num bairro específico? Ela só dava dinheiro ou trabalhava? Nada mais é dito.
Sobre John, ficamos sabendo que “estava com a vida estabilizada: era sócio do sogro no escritório de advocacia; tinha uma relação tranquila com a mulher”. Sua filha, Gina, era “estudiosa, consciente e participativa”. Parece que o narrador quer se certificar de que o leitor entenda rápido como são as personagens, não há tempo de mostrar suas personalidades em ação, melhor descrevê-las de uma vez.
Diferentemente do que acontece nos livros de Luiz Alfredo Garcia-Roza, por exemplo, aqui não vemos quase nada da vida da detetive. Ela só aparece para fazer perguntas. Sabemos apenas que tem um relacionamento e que “a relação dos dois era suave e sem expectativas, nenhum dos dois jamais citou casamento, morar juntos ou ter filhos” (note a repetição da locução “dos dois”; voltaremos a esse problema) e que eles “eram muito diferentes, mas era justamente isso que os aproximava”, uma caracterização absolutamente genérica.
Quando a detetive chegou à cena do crime, “pediu exames de digitais e de DNA para os técnicos.” Exame de DNA do quê? O Brasil não tem cadastro de DNA para comparação. Aqui só faz sentido exame de DNA com duas amostras, para saber se são da mesma pessoa, ou de parentes próximos. Nessa cena, não faz sentido.
Com exceção dessas deficiências, a trama é razoavelmente construída, o que já é bastante coisa. Montar um mistério de verdade é coisa bem difícil, e se alguém despreza o gênero e acha que conseguiria fazer algo assim com facilidade, garanto que bastará começar a tentativa para logo se ver em apuros. O próprio Biajoni precisa recorrer a expediente um pouco questionável: as gravações das câmeras do prédio feitas na hora do crime desapareceram. Mas vá lá, o enredo no geral faz sentido.
A maior fraqueza da história é mesmo a falta de narração. O texto nos conta um bocado, mas vemos pouca coisa acontecendo. Os personagens praticamente não interagem entre si. Em vez disso, temos sempre o narrador nos contando sobre eles e a policial fazendo interrogatórios. Isso dificulta a criação do clima adequado a um romance de suspense.
Última observação em relação ao enredo: Biajoni passa uma rasteira no leitor ao sugerir um novo mistério nas últimas três ou quatro páginas. Lamento, mas é contra as regras, o autor não pode fazer isso.
Passemos ao uso da língua.
A meu ver, o autor optou por uma prosa exageradamente simples. Simplória, mesmo. Parece evitar cuidadosamente o uso de metáforas ou qualquer outra figura de linguagem. Por outro lado, sobram repetições e explicações desnecessárias.
Trago vários exemplos, para deixar claro o que quero dizer.
Logo no começo, lemos em um parágrafo que “ninguém reclamava de barulho ou do que quer que fosse” e no parágrafo seguinte que “não era uma pessoa de se adaptar ao que quer que fosse”.
Vejamos outros casos.
Aquele casaco era inesperado e até incongruente: não fazia tanto frio naqueles dias para justificá-lo, não havia previsão para um inverno tão rigoroso. Também havia o fato de que Carol não saía tanto de casa, eles já não saíam mais, não havia uma vida social que justificasse aquele presente. Mas Carol ficou feliz, claro, e demonstrou a felicidade.
Em poucas linhas, três repetições: “tanto… tanto”, “Saía… saíam”, “feliz… felicidade”.
Voltou ao seu quarto, trocou de roupa, calçou tênis silenciosos, e saiu devagar do quarto.
Podia ter terminado com “saiu devagar”, afinal a saída só pode ser do quarto.
Mal abriu a boca para fazer qualquer comentário, quando sentiu a boca de Jim colada na dela. Afastou um pouco a cabeça, assustada, mas ele passou os braços pela sua cintura e investiu de novo. Jim sabia beijar. Ela beijou o rapaz.
No começo temos duas vezes “boca”. No final, temos “beijar” e “beijou”. Além disso, que descrição pobre! Ele sabia beijar? O que isso significa? O que ele fez que demonstra que sabia beijar? E mais importante: o que ele pensou e sentiu? O que ela pensou e sentiu? A literatura permite ao autor devassar a alma das personagens, e isso precisa ser feito.
Seus sentidos estavam alterados; ao deixar a cama, ela se dirigiu para o sentido oposto ao closet e ao banheiro, como se estivesse perdida, dentro do próprio quarto – depois, corrigiu seu curso.
Ora, se ela foi para o lado oposto ao que pretendia ir, é claro que seus sentidos estavam alterados (note-se a repetição “sentidos… sentido”). Ou você diz uma coisa, ou diz a outra. Ainda por cima, o texto ainda explica que era “como se estivesse perdida”, ou seja, três vezes a mesma informação. E não é óbvio que ela corrigiria seu curso? Precisa explicar que ela fez xixi no banheiro?
Carol parecia não estar neste mundo, comia como se estivesse catatônica; Gina achava que ela fosse errar a boca ao levar o garfo cheio de macarrão. ‘Ela não está bem mesmo’, pensou.
Essa última frase é desnecessária. Se a pessoa come como se estivesse catatônica (vamos ignorar o fato de que um catatônico na verdade não come), e parece que vai errar a boca ao levar o garfo, não precisa dizer que ela “não está bem”, nós já entendemos.
Pensou que o sábado estaria bom para tomar vinhos mais tarde e relaxar um pouco diante da TV, com cobertores. Pensou que seria um sábado tranquilo.
Se alguém pretende relaxar em frente à TV, é claro que acha que o dia vai ser tranquilo, não precisa dizer isso uma segunda vez. Tenha mais confiança na capacidade de entendimento do leitor!
perguntou se ela beberia alguma coisa – ela denegou. Indicou o sofá para que se sentasse – e ela se sentou.
A estrutura paralela das duas frases, com quatro verbos terminados em “ou”, é pobre. A afirmação final, “ela se sentou”, é o cúmulo da pobreza. Além disso, o verbo “denegou” não é sinônimo de “recusou” e não serve aí.
Nanete tentava não pensar mais naquilo. Ligou o rádio do carro e procurou por alguma música. Encontrou uma da qual gostava e cantarolou um pouco.
Esse trecho mais parece roteiro de cinema. Ligou, procurou, encontrou, cantarolou (de novo quatro verbos terminados em “ou”). Que música era? Que memórias essa música evocou?
Pete abria um vinho e servia uma tábua de queijos para Nanete, enquanto ela contava sobre as últimas descobertas. O namorado fazia observações engraçadas e inteligentes e ela pensou que era isso que amava nele.
Que observações eram essas? Não oferece um único exemplo? Por quê? O leitor tem que acreditar que o personagem é engraçado e inteligente sem nenhuma evidência?
Um dos defeitos deste livro é o mesmo d’O Crime do Bom Nazista: curto demais. Um bom romance de mistério precisa de atmosfera, precisa de vários suspeitos, e esses suspeitos precisam ter vidas, motivações, personalidades. Temos que vê-los em ação. O enredo tem que ter investigação, pistas, descobertas, subtramas. Tudo isso leva tempo, consome páginas, dá trabalho. E nenhum dos autores quis ter esse trabalho.
Em O Crime no Edifício Giallo, a linguagem decepciona pelo simplismo. Muitas repetições, tanto de palavras quanto de explicações. Falta lirismo, uso inusitado da língua, metáforas, um pouco de ousadia. Tem muita descrição e pouca narração. Sobra falação do narrador, falta testemunho em primeira mão das ações dos personagens.
Dou-lhe duas machadadas.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)