O Deus Oculto no Canto do Córner, 165 páginas, é da Danúbio
O narrador, ex-lutador profissional de boxe e ex-treinador de lutadores profissionais de boxe, conta um pouco da sua história, focando na época em que treinou um excelente lutador, o Zezão.
Segundo o narrador, Zezão era “um gigante com coração de criança”, “inteligência de cabrito”, “inocente como um vendedor de Herbalife”, “burro como um animal de carga”. Apelido: Monstro. Pobre, praticamente analfabeto, dez cáries na boca, mas “um ser humano desenhado para lutar boxe”. O sucesso parece estar chamando.
Fiz um tour com ele nas academias e colecionamos nocautes. Era dente voando pra tudo que é lado, gente vomitando, zigoma trincando
O personagem de Zezão está bem construído, mas o protagonista é o narrador, cujo nome não sabemos, mas cuja voz nos cativa pela sinceridade, pelo sarcasmo, pelo cinismo e, claro, pelo humor.
Aqui não temos campeões e nem os queremos (…) Olha o Pelé: ganhou tudo, conquistou tudo, foi tudo (…) Resultado: todo panaca fala mal dele (…) Brasileiro gosta mesmo é do Garrincha. Gosta do bêbado fracassado, que nunca atingiu seu máximo e acabou passando fome
Ele aos poucos vai fazendo de Zezão um campeão. Logo vem um ouro olímpico, tratado pelo treinador com pouco caso: “Todo mundo sabe que boxe olímpico é coisa de boiola (…) é um boxe pra mulherzinha (…) ser campeão olímpico é uma bela bosta”.
O narrador quase foi campeão olímpico. Só não conseguiu porque, um dia antes da grande luta, se meteu numa confusão e machucou a mão. Numa cena interessante, o treinador revela que precisa acertar seu relógio todos os dias desde 1974, quando o relógio deu defeito. Não por acaso, foi nesse ano que ele abandonou a carreira de lutador. A tristeza decorrente desse evento transparece no desprezo que ele afeta a respeito desse título e na admiração que professa por Eder Jofre, único brasileiro no “Hall da Fama” do boxe. Está claro que a trajetória de Zezão é uma chance de redenção para o treinador. “Pelos idos de 1995, tive a única e última chance na vida de fazer algo grande”.
Acabam indo para os Estados Unidos. Las Vegas. O grosso do livro é a narração das preparações para as lutas, as lutas propriamente, e as presepadas nas quais a equipe se mete. Poderia ficar cansativo, se o autor não oferecesse um texto tão leve e descontraído que me fez gargalhar a cada dez minutos de leitura. O estilo do narrador, que faz o tipo “desiludido da vida”, “já vi de tudo”, com suas tiradas espirituosas, parece uma mistura de Charles Bukowski com Nelson Rodrigues, e é extremamente cativante e faz valer a pena virar as páginas.
Depois conseguem um empresário de verdade e entram no circuito profissional, com chance de título mundial. Numa passagem interessante, o treinador desestabiliza o lutador adversário com uma provocação. O Monstro ganha a luta, mas a equipe é processada por interferência indevida. O treinador fica chocado com a ideia. “Quer dizer que o cara que apanhou pode ganhar a luta por conta de uma provocação? (…) Era isso aí, o boxe moderno! Sair na mão, perder e depois correr para a barra da saia de um advogado, com os olhinhos cheios de esperança: a esperança de que tudo seja o contrário do que é; de que o forte vire fraco e o fraco, forte”. O treinador é chamado a depor:
O boxe é o esporte mais igualitário e solitário que existe. Nele você não pode culpar seu colega de time, ou o tempo, o equipamento ou a torcida; é só você e seu adversário e a vontade de sair vencedor (…) Porque nós não temos nada (…) só temos nossa arte. Mas, se os senhores acham que o boxe deve se transformar nessa palhaçada de petições, e que os lutadores devem passar mais tempo com seus procuradores que com seus treinadores, e que o público tem que esperar dez dias para saber se o sujeito que foi espancado no ringue não é, na verdade, o campeão, podem nos condenar!
Uma profissão de fé na realidade, nos fatos. No mundo. As coisas são como elas são e nenhum discurso, por mais sofisticado que seja, pode alterá-las, colocá-las em algum leito de Procusto conceitual para que se moldem à sua vontade.
Zezão finalmente consegue marcar uma luta pelo título mundial. Não conto o final porque seria spoiler.
Milton Gustavo estreou bem. Nenhuma machadada.
Uma árvore sem machadada tem seu valor.
Esse aí está fazendo um burburinho entre pessoas com bom gosto kkkk Tõ só esperando entrar um dinheiro pra comprar.