Perto dos Olhos de Deus, 248 páginas, é da editora Assírio & Alvim.
Uma mulher leva as cinzas da mãe para espalhá-las no mar, realizando seu último desejo. Nessa viagem, conhece o mar pela primeira vez.
O último contato físico que tive com minha mãe foi o de suas cinzas em meu rosto, e aquele foi também um de meus últimos dias no mundo antes de eu mesma morrer. Até então, eu nunca havia visto o mar, e é provável que jamais o visse se não fosse por aquele último presente de minha mãe. Era apenas um desejo dela, como tantos outros relacionados a mim. A diferença é que desta vez eu a estava atendendo, e ela, claro, estava jogando isso na minha cara, jogando a si mesma na minha cara, com todos os pouco mais de dois quilos que lhe sobraram depois de cremada e que deveriam se perder no mar, mas que, movidos pelo vento e por minha estupidez, se juntaram à areia da praia.
A protagonista se ressente do péssimo relacionamento com a mãe, e a sensação de liberdade que sente ao se tornar órfã se confunde com a incomensurável e líquida liberdade do próprio mar que acaba de conhecer.
Na TV, todo mundo queria fazer sexo com todo mundo, e fazia. Menos nos desenhos animados e nos programas infantis, claro. Aquilo parecia bom. Não para minha mãe. Para ela, sexo era coisa do Demônio, e a prova disso era o fato de que, a única vez em que ela fraquejou, eu fui concebida. E, claro, quem a emprenhou foi o próprio Demônio. Só ele para ser tão desumano a ponto de abandonar uma mulher grávida. De qualquer modo, a mensagem era clara: eu era filha do Demônio. No fim das contas, isso me tira um peso da consciência, porque assim, sempre que falo de minha mãe e concluo com um “e que o Diabo a carregue”, penso que ela apenas se reencontrará com meu pai. Tomara que os dois estejam dançando agora.
A possibilidade de comandar a própria vida como queira, sem amarras, sem família, sem amigos, sem amores, significa para ela uma oportunidade de acabar com a vida. Ela decide se matar no mar.
Nunca senti um ímpeto suicida, nem vivi qualquer coisa que me degradasse a suposta ânsia pela vida, nem tive em meu corpo qualquer ação ou substância que me tirasse do prumo a ponto de me levar a algum impulso. Era apenas um caso de desistência devido ao simples motivo de não ser nada agradável viver permanentemente em estado de sofrimento. E eu queria, queria muito ter motivos para esperar pelo dia seguinte. Queria poder sentir a esperança que só conheci enquanto criança, porque nessa fase da vida não há a busca por sentido e nem o sentimento de derrota por não ser útil ou, pelo menos, não atrapalhar o mundo. E eu atrapalhava o mundo quando não atendia às expectativas de minha mãe, tornando-a mais e mais carrancuda, e quando bebia demais e ficava pela rua atrapalhando o sono alheio, e quando via na TV que o governo tinha de se desdobrar para atender a pessoas como eu, que não têm como se manter por si só. E o mundo me atrapalhava, porque, para que minha mãe não fosse carrancuda, eu teria de atender às suas expectativas, e porque as pessoas dormiam quando eu estava me divertindo, e porque o governo tornava quase impossível que eu pudesse me manter por mim mesma. Não havia nada no dia seguinte que me levasse a desejar estar lá, porque eu sabia que o dia seguinte seria a reprise de uma existência de agressão, difamação, vergonha, fome, desejos inalcançáveis, esperar por um carinho, mais um aborto, mais uma ressaca, mais cheiro de suor e urina, querer que Deus existisse, torcer para que o Demônio deixe de existir, não ser ouvida, querer um homem, querer uma mulher, querer a mim mesma. Nada estava ao meu alcance. Eu estava, mas ninguém queria me alcançar, a não ser as leis proibindo tudo. Então o que eu queria mesmo é que a lei fosse para o quinto dos infernos, lá onde eu tinha certeza de que minha mãe estaria dançando com o Demônio, ou meu pai, ou os dois sendo a mesma pessoa. Que seja.
A protagonista compra um barco e se lança ao mar, decidida a morrer. Entretanto, logo descobre a bordo um carona inesperado: um gato preto. Pela primeira vez, ela se sente responsável por alguém. Não quer que o gatinho morra por causa dela. A presença daquela outra vida interfere em seus planos.
Queria que ele não enjoasse e que dormisse aquecido e que o mar fosse gentil com ele, e as nuvens e raios também. Que Deus existisse para proteger o gato. Mas estava claro que não existia Deus algum. Se existisse, não teria permitido que o bicho entrasse no barco de uma suicida. Ou talvez existisse e, para me punir pela insolência de ser nada e mesmo assim querer acabar comigo mesma, tenha me mandado aquele gato para me dar uma amostra do inferno: azar, culpa, arrependimento e nenhuma possibilidade de perdão.
A partir daí, ela decide viver. Mas agora está em alto mar, sem comida, sem luz elétrica, sem combustível. Só ela, o gato e o mar infinito.
Aos poucos, o autor vai revelando alguns detalhes a respeito da moça. Na verdade, é ela mesma que, na situação limítrofe em que se encontra, finalmente se dedica a uma avaliação de sua vida e, em consequência disso, a um esforço constante para a manutenção dessa vida.
Alessandro Thomé cria, a partir de um enredo bastante simples, uma obra muito delicada. A prosa poética sempre corre o risco de descambar para o sentimentalismo, mas ele evita essa armadilha com maestria. O livro é escrito com muita habilidade, a personagem tem volume dramático, demonstrando a inteligência e a tolice, os sofrimentos e as alegrias, as contradições de uma pessoa de verdade.
Recomendo sem restrições, ou seja, nenhuma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)