Todos Nós Estaremos Bem, 192 páginas, é da editora Dublinense
Roberto e Lucia se conhecem quando jovens, e sua interação se resume a uma semana na qual não fazem quase nada além de sexo. Depois disso, ela entra na luta armada contra a ditadura e é presa, torturada e exilada. Anos mais tarde, os dois se reencontram em Paris e passam um dia e uma noite juntos. Nessa noite ela engravida e eles se casam por causa da gravidez, que gerará uma filha, Karla. Ainda criança, Karla tem leucemia, mas se recupera depois de um transplante.
A certa altura do casamento, já depois dos quarenta anos, Roberto se dá conta de que é homossexual ao ser seduzido por um homem bem mais jovem. Inclusive deixa de ir ver a filha que está à beira da morte do hospital para tentar se reencontrar com esse homem, pelo qual procurará durante anos. O casamento com Lucia se recupera depois que começam a ir a reuniões de sexo grupal (“sem as reuniões, estaríamos mortos em vida”). Numa dessas, a esposa pega AIDS.
O livro tem capítulos na terceira pessoa e na vários na primeira com o ponto de vista de Roberto, mas apresenta também o ponto de vista da esposa e um capítulo narrado pela filha. A montagem dessa polifonia está bem feita. O capítulo da filha, na minha opinião, é justamente o melhor. Traz esta bela passagem: “E, por ter testemunhado tanto temor e perplexidade, aprendi, mais cedo do que deveria, que meu pai não sabia o que fazer com as nossas vidas, e que dependia exclusivamente de mim reconhecer para onde eu deveria ir para conquistar o que considerava ser do meu interesse”.
Nota-se a ambição de refletir a história recente do Brasil. Roberto trabalha com publicidade e atende empresas que apoiam o regime militar, enquanto Lucia é comunista aguerrida. Os dois são retratados como equivocados, e a filha, décadas depois, é desiludida de tudo, destruída que foi pela tragédia. Entre a alienação do pai, que não sabe lidar com a própria sexualidade, ou seja, com a própria identidade, e o radicalismo sem consequência da mãe (Lucia afirma que o governo FHC é “de direita” e que implementou uma nova moeda “baseada num modelo neoliberal”), o futuro é o nada, é menos do que nada porque é a tragédia.
E a tragédia aqui é total. Todos os protagonistas estão perdidos, desiludidos, desenganados, sem saber o que pensar ou o que fazer, girando em torno de si mesmos com a cabeça baixa (nenhum deles estará bem).
O estilo do Sérgio Tavares não me agrada. Principalmente no começo do livro, o esforço para criar frases inusitadas e imagens marcantes às vezes parece sair do controle, levando a resultados que causam o tipo errado de estranhamento.
A crispação do metal frio
Crispação do metal?
O dia lá fora está banhado por uma claridade pálida infiltrada por ocasiões de outras cores
O que são ocasiões de cores? E por que “outras” cores?
as ondas invisíveis que fluem sob o asfalto
A princípio achei que fossem ondas de calor, mas depois notei que elas estão sob o asfalto. Seriam abalos sísmicos?
se ficar totalmente imóvel, poderá ouvir a motricidade ao redor
Ouvir a movimentação, a agitação, eu acho que ele quer dizer. Por que usar a palavra “motricidade”? Só para ser diferente?
o cheiro da massa do pão sendo cozida
Cozida? Pão não é assado?
assim como na seleção natural, prospera nos negócios aquele que se utiliza de estratégia e instinto para melhor se adaptar
Mas não é assim que funciona a seleção natural.
Na última noite, enquanto a penetrava com mansidão, entrelacei meu braço ao seu pescoço
Penetrar com mansidão? Entrelaçar o braço ao pescoço? Acho que estou fazendo sexo errado.
por onde transitavam estudantes que nunca seriam acolhidos pela corrupção que pairava sobre aquele trecho opressivo do tempo, era exatamente o do tempo que desejávamos puxar com garras o tecido, o desenrolar maquinal do momento suspenso
O quê?
o carro era um autômato gravitando sobre fachos que rasgavam a escuridão com esforço, uma bólide anêmica
Gravitando sobre fachos? Uma bólide anêmica?
Pedi uma garrafa de Brahma Chopp, que foi servida numa tulipa recém-lavada. O primeiro gole foi mágico
E daí se a tulipa foi recém-lavada? Um detalhe bem colocado pode fazer brilhar um parágrafo, mas o detalhe atravessado é um cisco no olho do leitor. E por que o gole foi “mágico”?
O livro tem muito sexo, o que é sempre arriscado do ponto de vista literário. De fato, as descrições que encontramos são de fazer inveja a esses ebooks autopublicados da Amazon com títulos como “a filha do CEO”:
Braços não musculosos, porém bem torneados. O tórax másculo era arvorado por pelos longos e escuros
o movimento repetitivo provoca a hirteza do que está dentro e do que está fora, uma pulsão atroz para se encontrarem na condição de um volume que não cessa até a fricção superar os dentes de ferro do zíper e ser imediatamente abarcado pela cova úmida onde serpenteia a carne larga e áspera responsável pela salivação
Usar a historia de uma família para tratar a história do país é um recurso comum e que pode levar a grandes obras. O difícil caminho do Brasil por entre péssimas versões da esquerda e da direita, Cila e Caribdes, é um tema importante, mas eu acho que Todos Nós Estaremos Bem, apesar de alguns bons momentos, deixa a desejar (o livro da resenha anterior, Os Automóveis Ardem em Chamas, tem um intuito parecido e se sai bem melhor). A relação com o Brasil não é muito convincente, o estilo se esforça para ser original, o acúmulo de tragédias deságua num niilismo deprimente e estéril.
Duas machadadas.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)