Uma Dor Perfeita, 159 páginas, é da Alfaguara.
Ricardo Lísias relata sua internação com covid, que realmente aconteceu, trazendo seus medos, suas dores, a atenção de médicos e enfermeiros, sua relação com a família. É um texto bastante pessoal.
Bom, não acontece muita coisa enquanto estamos internados. O mundo passa a ser a rotina. Higiene, exames, conversas rápidas e medo. Sendo assim, o romance não tem muito enredo. Um romance com pouco enredo pode ser bom, aliás a resenha anterior, Perto dos Olhos de Deus, é assim. Mas, se não há enredo, o livro precisa se manter com base ou em estilo/linguagem ou em ideias.
Lísias de fato tenta criar um estilo próprio, especialmente na primeira parte. Por exemplo, às vezes parece querer dissociar o autor do livro do narrador da história:
A dor já não me deixa perceber muita coisa. Faz uma força. É uma ideia escrota: ouça, eu perdi o controle. Mas hoje, apenas escreva. Não quero e o medo não é que acontecça de novo. Explique mais um pouco, é só um livro. Por isso, não suporto, nunca dará certo. Ou você tem outro receio? Não, vai ser perfeito. E é assim que você chama aquela dor desgraçada? Não acho melhor palavra: para os sorteados, a covid traz a dor exata. Então escreva com todas as letras: essa dor é perfeita. Não escrevo. Já está feito. Não entendo. Dane-se: sou o narrador, venço.
Ao longo do texto, ele repete várias vezes as mesmas informações, um recurso eficiente porque corresponde ao clima de hospital, que é mesmo tedioso e repetitivo.
Chegando ao final da primeira parte, o texto vai ficando meio pirado, conforme o paciente é tragado por alucinações, até que explode totalmente e se torna uma espécie de longo poema concreto.
São soluções, mas não acho que chegue a ter alta qualidade literária. Em termos de angústia hospitalar, o tratamento dado por Natalia Timerman (As Pequenas Chances, resenhado aqui) é bem melhor.
Passemos então às ideias. Aí, a coisa complica mesmo. Porque as ideias são curtas, só alcançam até o bolsonarismo.
A única ideia que Lísias quer discutir, como tantos escritores de sua geração no momento atual, é a suposta falência do Brasil nas mãos de Bolsonaro. Ele registra, por exemplo, que xingava o presidente enquanto estava na UTI, e que só uma pessoa achava graça, enquanto todas as outras apenas faziam algum gesto de concordância ou fingiam não estar entendendo. Às portas da morte, o cara insiste em julgar as pessoas pelo posicionamento político.
Em outro momento, critica e chama de “maldosa” e “estúpida” uma mensagem que recebeu de um outro escritor: “Toda força, meu caro Lísias! Estou aqui na torcida para que tudo corra bem. Na torcida e na confiança, porque você tem histórico de atleta. Conte comigo, camarada. Forte abraço”. Difícil entender o que pode haver de maldoso ou estúpido em mensagem tão amigável. Há ali a brincadeira com histórico de atleta, mas é claramente bem intencionada. Desencana desse amargor no coração, Lísias.
O autor descreve com intensidade seu ódio por uma paciente que pede para receber cloroquina. Ele quer agredi-la mas não consegue se levantar, acaba arrancando os eletrodos e leva uma bronca merecida da enfermeira: “Se enquanto estou aqui com o senhor alguém precisar de ajuda de verdade, pode acontecer alguma coisa. Temos problemas demais aqui, senhor Ricardo”. Ao mesmo tempo, sente-se culpado.
Toda essa consciência mas, quando a coisa aperta, entra no melhor hospital que pode. Você não faz ideia do que é o corredor do posto lotado. Acorda, tolo, a revolução não vai sair da sua folha. Toma um calmante e depois inventa um texto qualquer para salvar a sua consciência.
Ouvir alguém louvar a própria suposta consciência e falar em revolução é constrangedor.
Ele levou o filho à escola quando ela reabriu brevemente. Depois se arrependeu. “Queria ter a possibilidade de dizer que não aderi de forma alguma ao discurso da elite”. Que tolice essa conversa de elite, quanto ressentimento, quanta preocupação com a própria imagem. Ainda instiga os leitores jovens contra os pais:
Pode ser que os seus pais o tenham obrigado a ir à escola durante o pior momento da pandemia. Se você tiver estudado em colégios particulares, é muito provável (...) seus pais inventam agora que não, mas eles próprios podem ter tido a chance de trabalhar em casa. É provável que eles tivessem acesso a hospitais bem melhores que seus professores e os funcionários do excelente colégio que você frequentou. O resto é contigo.
O resto, que resto? O ódio? A revolução?
A certa altura ele pensa em fazer um conjunto de perfis de pessoas que morreram em busca de atendimento médico, mas desiste pois seriam muitos. “Esse tipo de coisa não passa de consciência moral de classe alta. Chamar o presidente e seus auxiliares de genocidas é mais efetivo”. Mais efetivo! Mais efetivo? Efetivo para quê?
Diz que seu prédio “é um condomínio de classe média, com moradores reacionários”. Ainda acha tempo de lavar até a roupa suja da família, dizendo que sente ódio das tias, que chama de cretinas.
Os melhores momentos do livro acontecem quando ele aborda as próprias vergonhas e quando comenta a relação difícil com o pai. Ali o texto cresce, brevemente. Devia se dedicar mais a isso. Esquece o ativismo político, esquece a revolução, esquece suas culpas burguesas, ninguém liga pra isso, e faz literatura, Lísias.
Duas machadadas.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)