Utopia, Pandemia, Cabeça de Boi, 156 páginas. Finalista do prêmio Kindle 2024.
O livro apresenta uma espécie de “comuna” em uma fazenda, para a qual as pessoas foram para se refugir da covid. O narrador, cujo nome não ficamos sabendo, é um homem, viúvo e pai de um menino, Miguel.
Duas personagens femininas se destacam. Júlia, a dona da fazenda e organizadora da coisa toda. E Marlene, inicialmente empregada da fazenda mas que, num lance de esperteza e iniciativa, prefere se tornar membro da comuna, em pé de igualdade com os demais. Julia é uma pessoa urbana, professora de uma universidade. Marlene é da roça. Ali, seu conhecimento é o mais importante. Ela ensina o pequeno Miguel a matar galinhas, preservar carne de porco na banha, fazer linguiça.
Os capítulos são bem curtos, e aos poucos vamos tomando pé da relação do pai com o filho, de Marlene com Julia, dos diversos moradores daquele pequeno experimento social. Alguns são vegetarianos, outros são veganos, e há os carnívoros. Dividir as despesas, trabalhar na horta, cozinhar, limpar. Inevitável que as desavenças apareçam, principalmente depois que uma chuva forte impede o acesso ao mercado local e prejudica o fornecimento de energia elétrica (“[Julia] se sentia traída pela força destrutiva da natureza que ela tanto venerava nas legendas de suas fotos de paisagem no Instagram”). Aos poucos a situação vai ficando pior. Chegam mais pessoas. “Já estávamos sem café, carne, arroz, feijão, tínhamos dois pacotes de macarrão para trinta e poucas pessoas”. Mas eles se viram.
O uso da linguagem é ótimo, mantendo-se equilibrado na linha entre a coloquialidade e a norma culta, incluindo aqui e ali sugestões do mineirês dos personagens, mantendo sempre uma dose de bom humor.
não confio na varinha de bambu, estivesse com meu molinete da sorte, buscava o bichão em dois palitos.
O tanto que esse seu ex caga é um desrespeito, deve estar roubando comida, não tem base.
Em busca da intimidade remota que um dia tivemos, fui sincero: cara, tô te achando meio acabado. Caralho, pensei o mesmo de você, que doideira!
De forma discreta, o texto discute a questão da identidade. Lutar pelo coletivo, cuidar da própria vida, ser urbano, ser rural, ser democrata, ser alternativo, ser opressor, ser oprimido. São escolhas. Constantemente feitas e refeitas, sempre com algum custo. E a leitura mostra, ainda que sem aprofundar o tema, o quanto essas identidades são não só fluidas mas dinâmicas e dependentes de interações, trocas e imitações.
Assim que Sílvio começou a filosofar sobre o silenciar de vozes, a potência enriquecedora de cada visão, a tropinha começou a rir, vaiar, fazer chacota do palavreado que eles mesmos usavam em nossas assembleias e que Silvinho, mesmo sendo um cara das antigas, tinha assimilado para fins de persuasão. Era como se, em essência, eles tivessem incorporado o tom jocoso que Fabiano oferecia a Sílvio, enquanto Fabiano tinha deles copiado a aparência.
Isso também transparece no fato de que Miguel está sempre grudado em uma das mulheres, imitando seu comportamento.
O livro é curto e pouco ambicioso. Mas é irônico, bem humorado e bem escrito. Dentro do que se propõe a fazer, sai-se bastante bem. Ainda por cima, consegue abordar a pandemia e o governo Bolsonaro sem resvalar no tom panfletário.
Nenhuma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
Concordo com vc. Li o livro e achei bem escrito e com tom jocoso. Não é profundo, mas é bom entretenimento.