Vale o que tá Escrito, 224 páginas, é da DBA.
O casamento de Danylton está falindo, assim como o café que ele tem em sociedade com a esposa. Sua rotina é uma lenta caminhada na direção do precipício. Essa caminhada é interrompida quando vê de passagem a figura de Lilico, um conhecido de infância que pensava estar morto. A partir daí, ele vai contar a história de Lilico da melhor maneira que pode, baseado em suas memórias, em conversas com amigos, em sua imaginação e na investigação feita anteriormente por Sara, uma amiga jornalista.
A narração inova ao misturar o livro que estamos lendo com o livro que Danylson está escrevendo, alterando os pontos de vista e também a pessoa da narração, com uso tanto da primeira, quando da terceira e até da menos comum segunda. Misture a isso o vai-e-vem temporal e temos um texto que requer atenção do leitor em meio a uma polifonia muito bem amarrada.
Aos poucos, a história de Lilico e seus dois antagonistas, Valdemar e Boamorte, vai se desenrolando e se revelando, junto com a história do bairro onde moram, na periferia de Brasília, onde parece que sempre valeu e sempre vai valer a lei do mais forte.
O livro funciona muito bem como retrato do Brasil, sem assumir em nenhum momento um tom didático ou sociológico. A violência, a corrupção, a pobreza, a esperança, aparecem como são sentidos na pele pelos personagens e não como discurso (aliás, nesse sentido é muito interessante a ausência do racismo entre os temas tratados; a cor da pele dos personagens não é enfatizada, e não há uma única ofensa racial ou episódio de discriminação desse tipo em toda a história).
O uso da linguagem é outro ponto forte. O autor acerta ao incorporar a língua brasileira falada, ao mesmo tempo sem cair na caricatura.
Bicho, você não vai acreditar, ontem eu vi o Lilico.
O Lilico?
Sim, o Lilico.
Tá viajando, Dany, o Lilico tá morto.
Tá não, fi, ele passou aqui na frente do café ontem.
Nesse curto trecho podemos apreciar o traquejo do autor. Usou a expressão mais prosaica “bicho” onde poderia usado a mais anódina “cara”, ou só o nome do interlocutor. Há a repetição por quatro vezes do nome de Lilico, típica da oralidade e que um autor mais medroso poderia evitar. Mesma coisa para a repetição da locução “tá”. Finalmente, a coloquial partícula “fi”, contração de “filho”, comuníssima em Minas Gerais e Goiás, que acredito ter visto pela primeira vez em livro nesta leitura.
Em 1958, se você fosse um crioulo forte, ou meio crioulo meio forte, ou um mulato atlético, ou até mesmo um moreno não muito magro, e mesmo se fosse gordo mas não fosse flácido, se tivesse mais de um metro e setenta e mais de vinte e oito dentes na boca, menos de trinta anos, e se estivesse esperando um ônibus, ou jogando de quarto-zagueiro no terrão, ou acabando de sair vencedor de uma briga de bar, ou esmurrando a cara da sua esposa no meio da feira até que ela, toda deformada, se engasgasse com sangue grosso e pedaços de dentes descendo pela garganta, sempre corria o risco de chegar um velho de óculos escuros, palito no canto da boca, cigarro sem filtro entre os dedos e te convidar para trabalhar na Guarda Especial de Brasília.
Belo trecho (exceto talvez pela menção a “pedaços de dentes”, que aparece mais de uma vez no livro; felizmente nunca levei um murro na boca, tenho certeza de que pode fazer cair um dente ou dois mas não acho que seja o caso de espatifar os dentes em pedaços).
Minha única ressalva ao livro é o finalzinho, no qual o autor enfiou uma reviravolta que, para o meu gosto, deixou a desejar. Achei que não funciona, nem como parte do enredo propriamente dito, nem como parte do projeto estético: páginas e páginas de explicação não combinam com a polifonia inicial e a desorientação que foram provocadas pela técnica narrativa ao longo do texto.
Mesmo assim, nenhuma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
valeu a leitura, mestre!