Veado Assassino, 112 páginas, é da Cia. das Letras.
Um garoto de dezesseis anos matou Jair Bolsonaro e agora está conversando com alguém a respeito disso, respondendo perguntas sobre a própria vida, sobre a família, a escola, a sexualidade, etc. O moleque se chama Renato, “o renascido” — Nazarian escolhe nomes com cuidado (em Neve Negra, os personagens eram Bruno e Alvinho, escuro e claro).
Quase não fiz esta resenha. Por quê? Porque o livro é todo em diálogos. Basicamente não tem enredo, não tem narrador, não tem narrativa, não tem descrições, a língua é toda oralizada…
Como o tema era o ódio de parte da população à figura de Bolsonaro, com as acusações arquiconhecidas de homofobia, machismo, racismo, etc, fiquei com medo de que o resultado fosse panfletário ou didático, mais uma obra para a lista das que pretendem tratar literariamente a experiência política dos últimos anos. Mas achei que o autor conseguiu escapar dessa armadilha. O uso intenso da ironia nos diálogos evita que se tornem didáticos.
O que temos é um relato realista da vida de um adolescente confuso, com enorme dificuldade em lidar com a amizade, a sexualidade, a família, a violência. Uma existência ensimesmada e vazia. Um jovem perdido, que não consegue gostar de nada, prematuramente cínico, sem nenhum interesse pelo mundo. A época da vida que deveria ser cheia de descobertas, interesses, voltada para a criação de si mesmo, aparece invertida de forma demoníaca, cheia de niilismo tolo e voltada para a destruição de si mesmo.
Ou seja, o assunto é até bom. Já o formato, só com diálogos, é incomum. Não digo inovador, mas pouco utilizado. E há um bom motivo para isso: acabo sendo cansativo e raso. Muitas interjeições, muitos cacoetes inevitáveis na fala, muita explicação. Nazarian faz bons diálogos, é fato — acima da média. Mas o dilema é impossível de ser superado: o realismo exige oralidade, e a oralidade cansa.
A oralidade de Grande Sertão: Veredas, por exemplo, não é tão cansativa, porque é sustentada pelo estilo. O estilo do Rosa é como essas ondas enormes que te levam de trambolhão e te deixam na praia com areia no short, desorientado. Ouvimos Riobaldo falar e quando damos conta já passou a hora do almoço. Já a conversa de um adolescente, em linguagem adolescente, ninguém aguenta muito, tanto é que o livro é curtíssimo.
Eu preferia que o autor tivesse contado essa história em um romance convencional, nos mostrando Renato na escola, Renato com a família, executando seu plano de assassinato, etc. Em vez disso, ficamos sabendo de tudo por ouvir falar, não vemos os personagens em ação, nos os conhecemos realmente. Há um velho conselho literário, atribuído a Chekov, que diz: “Não me diga que a Lua está brilhando; mostre-me o seu reflexo num caco de vidro”. É preciso certo cuidado com esses conselhos, mas no presente caso ele realmente fez falta.
O personagem tinha potencial, o tema tinha potencial, mas a exploração foi insuficiente. O livro não chega a ser realmente cansativo porque a leitura termina rápido.
(É uma pena que um autor conhecido, como Nazarian, acolhido na maior editora do país, com ampla distribuição, ampla divulgação, entregue essa papinha rala, enquanto livros bem mais sólidos são publicados por editoras minúsculas, de forma quase clandestina, e passem despercebidos.)
Duas machadadas.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
Outro livro panfletário que só de ler a sinopse me dá arrepios. rs