Viúvas de Sal, 130 páginas, é da editora Patuá.
Uma mulher forte e resiliente, desiludida do mundo por ter sofrido muito, abusada e explorada por homens, mas que continua seguindo em frente, porque é uma guerreira que nunca desiste.
O parágrafo acima descreve basicamente todas as personagens do livro, mulheres que formam uma cooperativa de pesca numa vila bastante pobre. São todas traumatizadas, como a narração não cansa de lembrar e relembrar.
Mulheres lutando pelo alimento diário, pelo sustento de famílias numerosas. As mais velhas, impedidas de se recolher para um descanso justo. As mais novas, impedidas de viver sua juventude. Mulheres. Quase cegas pela catarata, subnutridas, insones, deprimidas, vítimas de violência física e psicológicas em suas próprias casas.
A tal ponto isso é enfatizado que acabamos caindo numa espécie de pornografia da desgraça, em que uma sucessão de imagens de mulheres em sofrimento é oferecida ao olhar do leitor, sem muito aprofundamento dramático. Veja esta aqui sendo estuprada. Veja esta outra, sendo xingada e rejeitada. Esta aqui, mutilada. Espera, tem mais um estupro aqui. Olhe o sofrimento, repare bem o sofrimento. Close no sangue, no sêmen.
A alternância rápida de personagens contribui para essa sensação desconfortável de voyerismo. O texto conta um pouco da história das mulheres, mas é só para ressaltar as dificuldades pelas quais passaram e o quanto o mundo foi cruel com elas.
Falando em mundo cruel, não há praticamente um único homem que preste na história. São todos violentos, manipuladores, desonestos, vis. Com destaque, como não poderia deixar de ser, para os pastores evangélicos, que são descritos sem meias palavras como os seres mais desprezíveis que alguém poderia conceber. Ódio, crime, abuso, opressão, violência, preconceito, é só disso que se trata.
Existem apenas dois tipos de relações humanas dentro dessas páginas: as opressoras, que acontecem entre homens e mulheres, e as solidárias, que acontecem entre mulheres. (Exceto quando uma das mulheres é religiosa; nesse caso a religião é fator que a desqualifica e a torna uma espécie de opressora honorária, quase tão ruim quanto um homem. Pessoas que frequentam igrejas têm “presas e garras escondidas em cada sorriso, em cada gesto”, afinal não passam de “um rebanho pronto a trucidar a carne dos pecadores”.)
Só depois da página 80 temos um vislumbre de conflito entre as mulheres da cooperativa. Depois, um ou outro desentendimento aparece, algumas palavras duras, mas sem perder a ternura — de maneira geral a cooperativa é um exemplo de sororidade: “A potência da irmandade de viúvas vem dessa amálgama cúmplice. São mulheres que não competem entre si. Formam um corpo único, rijo (…) Compartilham juntas os momentos bons (…) Odeiam juntas os desafetos. São criaturas em comunhão”.
Curioso que, logo no começo, um bebê aparece morto. A narradora alerta:
Logo haverá uma busca pela mulher que afogou a recém-nascida. Sim. É exatamente isso que eles dirão. Antes de qualquer investigação. Que foi morte por afogamento. Que foi crime. Que foi praticado por uma mulher (…) Mas não importa o que inventem. Será uma busca inútil.
Parece que a comunidade de mulheres está prestes a ser vítima de uma grande injustiça. Acontece que mais tarde ficamos sabendo que foi exatamente isso o que aconteceu, uma morte por afogamento cometida por uma mulher. Ora…
Mas será que os sofrimentos descritos no livro, os problemas sociais e pessoais para os quais a autora quer chamar atenção, não existem? É tudo invenção? Por acaso não existe machismo, racismo, homofobia, intolerância? Óbvio que tudo isso existe. E muito. Pode bem ser que todos os eventos narrados sejam a mais pura verdade. Mas só a verdade e boas intenções não bastam para fazer literatura. Denúncia jornalística não é necessariamente boa literatura, indignação com injustiças e dramatização de mazelas nacionais não são necessariamente boa literatura (assim como uma arte “positiva”, como queriam os nazistas e os comunistas, que exalte as virtudes do povo e da pátria, também dificilmente será boa).
O texto da orelha (de Taciana Oliveira) afirma que o livro “evoca trajetórias marcadas pela constância da violência concebida à existência do gênero feminino. Muito mais que narrativas explícitas e dolorosas, a autora nos oferece personagens com perfis psicológicos desenhados em corpos atravessados pela realidade omissa”. Além de transparecer uma falta de jeito com a língua portuguesa que chega a ser cômica, o trecho está equivocado, pois o que a autora nos oferece é justamente um conjunto de narrativas explícitas e dolorosas, e nada mais.
Matéria prima para um bom livro, há. Sensibilidade, também, assim como um bom manejo da linguagem. Se Cinthia Kriemler mergulhasse mais fundo nos dramas das personagens, se o leitor as acompanhasse por mais tempo e entendesse melhor suas vidas, se não fosse tudo tão maniqueísta, poderíamos ter um bom romance. Mas para isso precisaríamos do triplo do número de páginas. Daria trabalho.
Duas machadadas.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)