Você me Espera para Morrer?, 184 páginas, é da editora Patuá.
Duas irmãs gêmeas, vivendo na miséria da zona rural brasileira. Não, não é Torto Arado, é coisa bem melhor.
Ilana e Aline, Lana e Line. Elena Ferrante escreveu “História de Quem Vai e de Quem Fica”, mas aqui só temos a história de quem fica. De quem espera. Espera uma vida que nunca vem e uma morte que está sempre rondando.
A protagonista é Ilana, a irmã gêmea que não é gêmea, é menos gêmea: menos bonita, menos simpática, menos inteligente, menos apta a navegar pela vida sozinha.
Os capítulos alternam uma longa carta que Ilana escreve em primeira pessoa para Aline, a irmã que está longe, tendo partido ainda adolescente para nunca mais voltar, e uma narração em terceira pessoa que rememora a sua vida, sua relação com a irmã, os pais, os tios e a filha e as perdas sucessivas de cada um deles.
A vida de Ilana é triste, tristíssima. E narrada com muita sensibilidade, sem descambar para o sentimentalismo ou a lágrima fácil. A pungência do texto se equipara com a primeira (excelente) parte de As Pequenas Chances, de Natalia Timerman, já resenhado.
A voz de Ilana, que aparece na carta, é bem construída. Tem o tom certo, o léxico, as imagens. Maria Fernando Maglio consegue fazer transparecer o desamparo de quem não tem ninguém, de quem foi esmagado pela vida sem nem ter tido a chance de lutar. Ilana não está equipada para lidar com o mundo difícil que precisa enfrentar, é um espectador que entrou no ringue por acaso e está apanhando sem nem saber por que, olha ao redor mas todos estão de costas.
Agora eu só tenho você e eu espero que você esteja me esperando aí nesse lugar de gelo, aguardando um sinal meu, alguma coisa assim. Eu também espero um sinal seu, mas não tenho coragem, Line, pensei um tanto jeito. Arma eu não tenho, nem sei onde comprar, mas tenho faca, também podia subir na torre e escorregar igual a Maria, imitar a dor dela de ter a cabeça arrebentada no cimento, será que ela pensou em mim enquanto voava lá de cima, sentiu raiva, amor, será que ela me amou algum dia? Nos cartões de dia das mães ela escrevia que sim, eu te amo, mamãe, mas eu sentia que não era pra mim, entende, Line, a mamãe do cartão era outra, uma mamãe que ela não tinha, que ela queria tanto ter e, se tivesse tido, estava aqui no mundo, não era grilo e folha e a água barrenta do riacho.
Aline vai embora. Quem pode culpá-la? Nunca ficamos sabendo o que aconteceu com ela. Amou? Foi amada? Sofreu? Fez alguém sofrer? Ilana e o leitor gostariam de saber, mas não podem. Mas essa incerteza é a mesma que temos em relação à nossa própria vida quando vamos embora de alguma situação: Amarei? Serei amado? Sofrerei? Farei alguém sofrer? Estamos sempre indo embora.
A narração também é acertada. Seca quando tem que ser, tocante quando tem que ser. A morte trágica de uma criança é um tema arriscado, por exemplo, mas a autora se sai muito bem. A forma como o texto funciona em espiral, girando e voltando, retomando temas já mencionados para aprofundá-los, para olhá-los de outro ângulo, depois de outro, introduzindo rimas temáticas entre os capítulos, é bem feita.
Não quer ter raiva da bebê, mas tem medo de que tenha, porque é muito tempo. Queria ser mãe só por um dia, uma semana. Pronto, acabou, nunca mais. Quando descobriu, o teste de farmácia com dois pauzinhos, chorou, Deus que me perdoe, eu não quero. A cartela de Cytotec no lixo, novinha, não teve coragem. Não sabe se não teve coragem de matar a bebê que era só um girino ou se teve medo de morrer
A vocação desta newsletter é ser crítica. É explorar os defeitos, é descer o machado. Como já expliquei anteriormente, acho que é isso que falta no Brasil. Resenhas que se desmancham em elogios já temos demais e essas certamente não faltarão a esta obra. A vocação aqui é ser crítico, eu dizia, e eu acho que não sei fazer resenha muito positiva. Só que aqui ficou difícil achar defeito.
Nenhuma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
"Duas irmãs gêmeas, vivendo na miséria da zona rural brasileira. Não, não é Torto Arado, é coisa bem melhor." Esse início ajudaria muito a chamar a atenção do público para o livro da Maria Fernanda Maglio. É uma autora que merece mais destaque. Ela já me chamou a atenção quando li uma resenha de "Quem tá vivo, levanta a mão". Outro fato interessante é que ela é (ou era) promotora pública. Junto com uma juíza cronista (que eu não vou citar por que talvez não seja do agrado do Décio) e outros, faz parte de um time de membros do judiciário talentosos. O oposto de outros que publicam livros ruins, lançados em coquetéis para os pares e que acabam vendidos a R$5 nos sebos.