Areia movediça, 164 páginas, é da Danúbio
A história começa com o protagonista se sentindo sozinho numa festa e achando esse sentimento muito original. É um mau começo, já que qualquer leitor sabe que a experiência da solidão em meio à multidão é absolutamente trivial e que, literariamente, consiste num péssimo clichê.
O nome do protagonista só saberemos na última página, mas não tem problema revelar: é Faustino. Ele se pretende um pensador, um crítico do mundo. Por meio dele, Douglas Lobo vai tentar inculcar no leitor uma mensagem bastante clara, usando inclusive a narração em segunda pessoa, ou seja, recorrendo à palavra “você”, o que dá a impressão de que o narrador fala diretamente conosco.
Entretanto, a profundidade do pensamento crítico de Faustino não é tudo isso. “A vivência no Rio lhe ensinou que aqui não somente as roupas, mas os gestos, a estética corporal e ainda as palavras utilizadas nas conversas são escolhidas para causar determinada impressão”. Ora, mas descobriu a pólvora! Quer dizer que o comportamento das pessoas visa causar uma determinada impressão nas outras pessoas? Será mesmo?
Para outro exemplo: a certa altura Faustino avalia que seu amigo Dionísio, quando em público, faz performances pouco espontâneas e exibe apenas um personagem, a fim de cativar os presentes. Descobriu a pólvora de novo! Nesse ritmo… Então as pessoas cultivam personas sociais que não são inteiramente autênticas? Não me diga.
Quando Dionísio se põe a defender a revolução comunista, o protagonista acha seu "comunismo de iphone" uma coisa constrangedora. Sim, claro, mas e o quanto é constrangedor achar que só ele acha isso? Faustino “pensa que foi no colégio o momento em que soube que era diferente, que não vivia nas linhas comuns aos demais.” Como todo adolescente.… Aliás, várias vezes ao longo da obra o protagonista se pergunta: “Qual o propósito da minha vida?”.
O desenvolvimento do personagem é mais contado do que mostrado:
O mais difícil foi aceitar a hierarquia. Empenhou-se em domar, a custo, o rebelde em você. Após um ano havia se tornado um homem corporativo: o operário de escritório, sem criatividade, submisso a ordens — a literatura e o jornalismo, expressões de seu lado transgressor e criativo, soterrados. Mas estava satisfeito com a transformação; não desconfiava, então, que sufocava a si próprio
Entendeu de quem se trata, leitor?
As críticas à sociedade carioca, que representa a sociedade brasileira como um todo, são recorrentes. “Na vitrine de loja que é o Rio de Janeiro, todos estão expostos, à venda, para que alguém decida comprar ou não”. Em uma única página, temos “no Rio tudo é permitido, exceto a autenticidade”, “quem liga para moral sexual no Rio de Janeiro?” e “no Rio de Janeiro, sexo a três é considerado normal”.
Faustino é um jornalista que trabalha na Petrobrás durante a crise do petrolão. Mas a trama não é trabalhada com esmero, não passa de pretexto para a mensagem que o autor deseja transmitir. O livro é a história da conversão de Faustino ao conservadorismo, onde vai encontrar a paz de espírito que tanto busca e o sentido da vida.
Para isso, primeiro somos apresentados ao seu grupo de amigos da Petrobrás, todos de esquerda, hipócritas, ignorantes e autoritários. “Em seus dez anos com aquele grupo, você jamais viu alguém ali dar uma opinião que divergisse do consenso em torno de alguns assuntos — um consenso tácito, nunca declarado, mas cujos temas dalgum modo todos conheciam: direitos humanos, minorias, politicamente correto, estado de bem estar social”.
Depois, ele entra para um grupo de leitura e para o curso online de Olavo de Carvalho, renomeado no livro para Osvaldo de Albuquerque. Segundo o testemunho de Faustino, sem nenhum traço de ironia, “cada palavra dele exala sabedoria”.
Nesse ambiente, ele descobre o conservadorismo e os verdadeiros problemas do mundo. “Se preocupar com os desfavorecidos é bem diferente de subverter os valores greco-cristãos de nossa sociedade”, diz um novo colega. Valores greco-cristãos!
Esse grupo de direita é muito mais aberto à discussão e menos autoritário do que o grupo de esquerda, e ele finalmente se sente acolhido por pessoas autênticas, sem falsidade. Um deles diz que quer ser editor de livros. “Vou fazer os brasileiros voltarem a ler os clássicos.” Voltar? A ler os clássicos? O brasileiro? Não faz nem cem anos que mais da metade da população aqui era analfabeta. Do que você está falando, amigo?
Faustino aprende sobre o conservadorismo e, ato contínuo, vem ensiná-lo para o leitor, afinal é para isso que o livro foi escrito. “Você se põe a ler literatura política conservadora. Burke, Kirk, Buckley. Aprende com eles que…” e lá vem falação didática sobre a importância da tradição e da prudência.
Como não poderia deixar de ser, ele também descobre a importância da religião para que a vida tenha um sentido. Religião católica, obviamente. O padre lhe explica a vida:
— Você se vê perdido, sem rumo, sem algo que o motive a seguir em frente?
Seus olhos marejam (…)
— Isso corre porque os apelos do mundo te impedem de encontrar teu propósito na vida.
— Desculpe, padre, mas não consigo entender.
— O indivíduo sem Deus é vítima fácil das tentações físicas e morais do mundo (…) Essas tentações envolvem o homem como que num nevoeiro. Ele só consegue ver o que está a um passo dele. Não enxerga, mais à frente, o propósito de vida que Deus lhe reservou.
Para que fique tudo perfeitamente claro, ele volta aos amigos de esquerda e os resume para o leitor (ou seja, não basta que os personagens não tenham profundidade, ainda é preciso explicá-los). “Jairo. O narcisista. Tudo o que faz é para se apreciar no espelho (…) Paulo Sérgio. O capacho. (…) Bruna, a ninfomaníaca. Vive pelo sexo, não pelo afeto”. Você não vai querer ser como eles, vai, leitor? Fica aí a dica. Cuidado com as más companhias…
Não poderia faltar uma metáfora simplória, então a certa altura o protagonista adota um pombo machucado, que vai se curando ao longo da história e alça finalmente voo justo quando Faustino encontra o sentido da vida, subindo até o céu numa cena que ficaria linda como final de capítulo de novela das seis.
É irônico que um livro cujo protagonista diz amar literatura, quer ser escritor e faz parte de um clube de leitura dedicado aos clássicos seja tão mal escrito.
A maioria dos livros que critiquei por serem didáticos o fazem pela esquerda, estão repletos de bom-mocismo, querem ser antirracistas, antimachistas, a favor dos oprimidos, etc. Este é um caso de livro didático pela direita.
Pelo didatismo, pelo moralismo, pelos personagens esquemáticos, três machadadas.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
Está escrevendo um romance? Quer uma leitura crítica 100% sincera? Escreva para decio.machadada@gmail.com
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Sempre acho mais divertidas as críticas com três machadadas.
kkk tem uma veia cômica que vem aflorando nessas últimas resenhas, cada vez melhores! Bom também que encontre exemplares onde consiga deixar claro a neutralidade ideológica de suas resenhas, no atual contexto se cedesse uma rotulação fácil para um lado ou outro, o projeto, que é muito bom, poderia ser minado de seu potêncial.