Cão Maior, 180 páginas, é da Telucazu.
Resenhei anteriormente Perto dos Olhos de Deus, do mesmo autor.
O livro tem dois personagens principais, duas crianças: uma menina, Pétria, e um menino, Alfredinho.
Pétria tem duas paixões na vida, os peixes e as estrelas. É seu pai que lhe ensina olhar as estrelas, porque, segundo ele, “só assim você poderá esquecer tudo de ruim que acontecer com você.” E vai acontecer muita coisa ruim. Ele sabe disso, porque abusa sexualmente da menina desde pequena e, conforme ela cresce, ele a obriga a se prostituir.
Papai era muito trabalhador mesmo, talvez por isso tivesse dito a Pétria que nada é de graça. Se você quer ganhar um aquário com dois peixes, tem de demonstrar o quanto ama seu pai. Se você quer que seus peixes mandem beijos para você, tem de alimentá-los. Com as estrelas não. É só esperar a noite e não dormir. E foi por não dormir que Pétria viu seu pai voltar ao quarto. Passos leves nas sombras, o peso sobre o colchão, a mão com cheiro de cigarro passeando pelos cabelos. A mesma mão aqueceu o pescoço da menina, e o pai explicou a ela que o amor tem várias formas
O pai, que nunca é nomeado, mantém sobre Pétria um controle rigoroso, impedindo-a de aprender a ler e escrever e de ter qualquer contato que não seja com seus “clientes” sexuais, de modo que ela cresce num estado anormal de ingenuidade.
Alfredinho também tem sua vida ligada aos peixes. Seu pai vivia da pesca, até que a construção de uma hidrelétrica deixou sua casa embaixo d’água e fez a família se mudar para uma cidade. A mudança se mostra muito difícil para todos eles. O pai precisa passar de pescador a porteiro, a mãe deve se resignar a ser faxineira de madame, e a menina descobre desejos consumistas e vaidades que não existem na beira do rio.
Como os círculos formados na superfície de um lago atingido por uma pedra, Alfredinho foi aumentando seu campo de busca, e no final da tarde havia aprendido duas coisas: que as cidades não foram feitas para comportar todo o mundo e que a palavra “não” tem uma incrível capacidade de se transformar na única esperança possível diante de uma pergunta. Antes de entrar pelo portão, Alfredinho olhou para a rua, e esta lhe pareceu menor. As pessoas que voltavam para suas casas pareceram mais pesadas, mais perigosas, mais tristes. Os carros que passavam pareceram não ter destino, e os que estavam estacionados pareceram mortos. As casas grudadas umas nas outras se assemelhavam a um punhado de túmulos. Alfredinho, apesar de não ter conseguido um emprego, descobriu que havia acabado de se transformar mesmo em um homem
Um dia, Alfredinho toma uma condução errada e vai parar na beira da rodovia, onde encontra uma menina se prostituindo para os caminhoneiros. É Pétria. Os dois unem suas ignorâncias e suas ingenuidades numa amizade insólita. Nada sabem do amor e da vida, mas Alfredinho meio que se apaixona por Pétria e pretende ensiná-la a ler e escrever, e ainda dar-lhe um livro sobre peixes. Para poder ter dinheiro para isso, ele decide se tornar assaltante.
Alfredinho leva Pétria para conhecer a represa que cobriu a casa onde ele morava. Lá, ela poderá ver peixes in natura. Assim, os dois fogem, cada um de sua casa, e saem pedindo carona. Os pais de Alfredinho ficam preocupados, o pai de Pétria fica furioso. Ele sabe que o garoto é responsável por aquilo, então vai até a casa dele e ameaça seus pais. Que tragam sua filha de volta logo, senão…
O pai de Alfredinho consegue encontrá-los e trazê-los de volta. Acontecem mais coisas antes do final, mas não convém dar spoilers.
Alessandro Thomé constrói um excelente contraste entre o peso dos assuntos abordados e a leveza da linguagem utilizada, entre a dureza e a violência do mundo e a maleabilidade aparente do mesmo mundo, seu potencial para múltiplas interpretações, quando visto pelos olhos de crianças.
O narrador consegue trazer poesia e sentimento para o texto, sem escorregar para o melodrama. “Naquele sorriso caberiam todas as lágrimas que ela já chorara e mais um bocado de esperança”; “todo mundo sabe que ninguém pode ser mais feliz do que dois adolescentes andando pelo acostamento de uma estrada”; “Ela iria, porque força ela tinha desde quando aceitou sua condição de vestido desbotado com motivos de flores. Desde quando lhe negaram o direito de viver naquilo que sempre fora seu. Desde que aceitara manter limpos aqueles malditos pisos. Perdera seu filho para uma menina de cabelos vermelhos. Perdera sua filha para batons vermelhos. Se chorasse mais uma vez, choraria em vermelho”
Uma história simples e curta, porém profunda. Ótimos personagens; narração de alguém que sabe o que está fazendo.
Nenhuma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
Boa, programação pra esse fds 🙏🏻