Vento de Queimada, 518 páginas, é da Record
A história, ou as histórias, se passam em Goiânia e no interior de Goiás. O clima árido, o ambiente meio de fim-do-mundo, lembra westerns americanos, o que é reforçado pelos temas de vingança, justiça com as próprias mãos, vida na fronteira.
Tudo acontece no começo da década de 1980, o que é marcado pelas músicas, por exemplo, e uma ou outra referências ao regime militar, porém fica a impressão de que poderia ser em qualquer outra época, aqui neste país eternamente castigado pela queimada trazida pelo vento.
O prólogo tem um clima meio bíblico (com a história de alguém que salvou da morte uma prostituta e depois levou um corte na barriga, e alusões ao número setenta vezes sete, a uma procissão e à possibilidade de uma pessoa transformar outra em pescador). Depois há três partes que contam a história da matadora Isabel, divididas por dois interlúdios. Enquanto se desincumbe de suas “tarefas”, ela vai rememorando e avaliando sua relação com o pai, também ele um matador, e com a vida que tem levado. A narração transita entre o presente, o passado e os pensamentos, meio desencontrados e repetitivos, da moça.
E agora ele dirige, toca-fitas desligado, um naco da parte superior da tatuagem visível no pescoço. O mesmíssimo homem, exceto pelo cigarro, tantos anos sem fumar e agora isso? (Será que Gordon conseguiu parar?) Rumo à tal chácara do Velho. A gente faz isso agora? O mesmíssimo homem, mas com novos hábitos pessoais e profissionais. Desde quando? Rendez-vous no Abaporu. (Porra, eu não fui lá no Abaporu para matar ninguém, não.) A moça fodida por dentro e por fora, de novo e de novo, furada setenta vezes sete, a troco de nada. (É, eu sei. É demais.) Mas as coisas tinham mais ou menos se ajeitado. Almoço de conciliação. Compensação paga. A história meio esquecida. A troco de nada. O que será que aconteceu desde então?
As repetições vão se acumulando e são um pouco chatas, mas os pensamentos da gente são mesmo repetitivos, de modo que esses momentos de introspecção de Isabel ficam verossímeis. A personagem é boa, bem construída.
O modelo é o policial noir, e os clichês do gênero estão lá. Eu gostaria de poder dizer que o autor pega esses clichês e os recicla, os subverte para criar algo novo, mas não é bem isso o que acontece. O que ele faz é nacionalizá-los e servi-los com pequi. Temos o durão que toma uísque no café da manhã, mas em Goiás; temos o matador que faz um último serviço antes de deixar essa vida para trás, mas em Goiás; temos os niilistas desacreditados do mundo, mas em Goiás:
Ex-deputado federal, ex-senador, ex-governador. Que tipo de negócios terá com o Velho? Uma sociedade propriamente dita? Ou um político amigo, pronto para quebrar esse ou aquele galho? Mãos lavando outras mãos. As pregas altaneiras da República. O senhor é assassino ou apenas amigo de assassinos? Traficante ou facilitador? Foda-se. Quem se importa? Nessa história ou em qualquer outra: ninguém.
Eu tenho uma opinião geral sobre toda e qualquer situação: é uma merda. Eu tenho outra opinião geral sobre toda e qualquer situação: melhor desistir. Eu tenho uma terceira opinião geral sobre toda e qualquer situação: foda-se.
O problema dos niilistas é que, como diz Walt em The Big Lebowski, eles são a bunch of fucking crybabies, e esse papo é cansativo.
Os diálogos também vão cansando um pouco, encharcados que são de banalidade e repetição.
Um exemplo:
E agora a espera acabou. Quer o serviço?
Nada muito pesado?
Nada muito pesado.
Bom, nesse caso eu tenho interesse, sim.
Ótimo. Pode vir a Goiânia?
Você está em Goiânia?
Estou. Pode vir?
Quando?
Hoje mesmo, pequena. Agora.
Agora. Hoje. Sim, senhor.
E traga roupa pra semana inteira.
Viajaremos?
Há sempre uma viagem a ser feita.
Viajaremos.
Sim.
Outro exemplo:
Hotel Metrópole, Praça Botafogo. Sabe onde fica?
Não fode.
Você vai pra lá e espera. Alguém vai te procurar mais tarde, por volta das 23 horas.
23 horas.
Por aí. Vai pra lá e espera.
Só isso?
Só. Por enquanto.
Por enquanto. Claro.
Cabeça fria, pequena.
Sempre.
Poderia dar muitos outros exemplos. Depois de um tempo, o olhar da gente quer escorregar pelos diálogos sem prestar atenção. De modo geral, o livro é muito longo e abusa da paciência do leitor. Se fosse mais curto e mais ágil, poderia ser ótimo.
(Na minha opinião, os dois interlúdios são desnecessários — parece que o autor já tinha esses trechos escritos, não quis perdê-los e pensou “vou enfiar como interlúdios, foda-se”).
Engraçado que resenhei dois livros pseudo-policiais (O Crime do Bom Nazista e O Crime do Edifício Giallo) e critiquei-os por serem curtos demais. Agora critico Vento de Queimada por ser longo demais. É a vida.
Seja como for, fica claro que André de Leones é um bom escritor e sabe o que está fazendo, ou seja, tem lá seus motivos para suas escolhas estilísticas, que são tomadas conscientemente e podem ou não agradar algum leitor. Pessoalmente, não vejo graça em escatologia, por exemplo, não sei o que o autor pretende ao derramar sobre mim litros de sangue, merda e sêmen (os fluidos da vida, obviamente, mas est modus in rebus). É questão de gosto, acho.
Pelo excesso de repetições, de escatologia e de páginas, uma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
Caro Décio, eu daria umas 3 machadadas nesse livro do autor do excelente "Dentes negros", meu conterrâneo De Leones, que de resto é bom escritor, conhece o ofício narrativo etc. O que mais me irritou nesse livro foi a violência gratuita. Parece bonitinho ser violento. Alguém disse que é uma tragédia grega recriada etc. Sinceramente, é tão só desejo de se mostrar "oh, viram como posso ser um Cormac ou similar?" Não me agradou esse livro e li quase todos os demais dele, De Leones, entre os quais destaco "Terra de casas vazias".
Sigo com entusiasmo seu ofício (suas machadadas), Décio, imprescindíveis para formar uma visão da literatura atual, com a qual nem sempre tenho paciência.
Obrigado por seu trabalho,
Beto.