Via Ápia, 344 páginas, é da Cia. das Letras
O romance é dividido em vários capítulos curtos e segue a vida de cinco jovens moradores da Rocinha, ao longo de dois anos, que incluem a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora, a UPP. O título do livro vem do nome de uma rua importante na favela.
Washington e Wesley são irmãos. Os dois começam o livro trabalhando como garçons de festa infantil. O primeiro é logo demitido e começa a procurar emprego, distribuindo currículos, até virar lavador de pratos; o segundo se envolve romanticamente com uma colega, Talia, e mais tarde se torna usuário de cocaína. Os dois querem melhorar de vida para ajudarem a mãe a comprar uma casa própria.
Biel, Douglas, Murilo moram juntos. Esse último é soldado e vive o medo de um dia receber ordem de invadir uma favela de arma em punho. Douglas quer ser tatuador e Biel participa do pequeno comércio de drogas. Seu estilo de vida desordenado faz com que o senhorio expulse os três do apartamento na Via Ápia.
Esses dois núcleos se encontram mais ou menos na metade do livro, quando Biel, Douglas e Murilo se mudam para a vizinhança de Washington e Wesley.
Obviamente, o tráfico de drogas faz parte do pano de fundo da narrativa, mas nenhum dos personagens principais tem papel de destaque nessa atividade, o que talvez demonstre um esforço do autor para fugir do estereótipo. De fato, o livro quase não tem violência, o que é incomum quando se trata dessa temática. Por outro lado, certamente haveria um ganho de perspectiva se um personagem com trânsito maior que o de Biel por esse submundo tivesse sido introduzido.
A característica mais marcante do livro é o uso da linguagem. O autor põe na boca dos personagens o português falado no dia a dia das favelas cariocas.
— Qual foi, menó. Bora meter logo o pé.
— Tô esperando meu dinheiro, mano. Ângela é foda, tá marolando com a minha cara. Ela acha que se ficar me enrolando eu vou embora. Duvido, menó. Duvido que eu saio daqui sem meu dinheiro.
— Coé, menó, pega esse bagulho depois.
— Foi esquisito o bagulho hoje, menó, papo reto. Mas foi engraçado também, sei lá, os cara é mó piada. Tá ligado que eu hoje fui lá ver o bagulho da identidade, né? Fui mermo. De manhãzinha, já brechei que ia dar sol, hã, peguei logo uma bermuda dessa, brotar na praia, tá ligado? Ainda mais curtir uma parada diferente, já ia tá dali de Ipanema mermo, gostosim. Tranquilão, né, tudo certo, bateu mó preguiça de subir ali na boca. Eu ia passar lá na da Via Ápia mermo, era até caminho. Vê legal agora, cheguei lá: tava em falta, tinha só pó e lança. Estiquei ali no Valão, merma coisa. O amigo deu o papo que maconha tava rolando só na Cachopa, naquela hora. Fiquei boladão, fala tu, mó parada. Aí também não ia voltar, que minha intenção era de resolver logo o bagulho lá no Poupatempo. Nessa que eu lembrei que o Chapolha foi de missão na Cruzada essa semana ainda, falou que a de dez tava o verme. Ele tu sabe qual é a visão, tem que acreditar na palavra dele, que a maconha quando pega ninguém sente nem o cheiro, papo reto. O menó pega um peso e some, desaparece que ninguém vê. Fala tu, é foda. Pior que que nem ele tem vários, só vem a nós, eles acha que passa batido, eles. Mas aí tranquilão também, eu podia até que pegar no Galo mermo, que é do lado, colado ali no Poupatempo, mas vou te falar legal, sinceridade, eu prefiro andar com o sol na cabeça, dando moca, machucano, do que fortalecer aqueles alemão lá. Tudo mandadão. Qualquer neguim que vai de fora lá, eles bate neurose. Tu sabe o que é isso? Os cara não sabe ganhar dinheiro, eles confunde. Têm que aprender e muito é com os menó do Jacaré, Manguim, aqueles lado lá. Ali sim, mano, tu pode falar que é o crime. Bagulho de verdade. Os cara quer saber de nada, quem é tu, de onde veio, eles quer é vender a droga deles, papo de qualidade. Na boca ali já fica geral pesadão pra isso mermo, pro cliente ficar à vontade.
— Hã, tinha que ver, menó, mó terrozinho do caralho. Os cana já chegou como, fuzil na cara, mão na parede e pá e tal, a gente ficou, porra, baqueado, fala tu; só naquela de calma, meu senhor, geral aqui é trabalhador e coisa e tal. Tranquilo. Tava eu, mais o Cabelim, o Lesk e o Dodô, se não me engano. Aí, pega visão, tinha nem flagrante mermo, tá ligado? Eu tava crente crente que eles ia botar logo geral pra ralar. Hã, porra nenhuma. Os cara tonteou, mas tonteou bonito. Papo deles era de saber onde é que tava a boca. Fala tu, eles acha que é assim, que X9 nasce em árvore nessa porra. Hã, num fode. Ficou geral como, meu senhor, eu só sei que nada sei, se ligou? Pra quê, neguim. Aí que eles choqueou mermo, falou que, se ninguém desse o bagulho, ia geral pra delegacia e pá, que tinha um quilo de farinha no Logan só no aguarde de qualquer neguim pra assumir a bronca, fala. Eu fiquei bolado, tá ligado como é que é eles. Mas aí, maluco, porra, tinha que ver, aconteceu um bagulho engraçadão, papo reto: os cana queria saber o nome de geral, que ia puxar na ficha, que não sei o quê, tranquilo. Menó, quando falei meu nome, porra, tu tinha que tá aqui pra ver; geral me olhou com mó carão assim, entendendo nada. Depois foi o Cabelim que falou o nome dele: Luciano. Aí o Lesk, que é Alex, tá ligado? E o Dodô, que eu acho que é Jaílson, ou Jeimerson, um bagulho desse. Mas fala tu, mó graça, né não? Desde menó geral se conhece, mas ninguém sabia o nome de ninguém, só o vulgo mermo.
Só que oralidade excessiva é uma característica que inevitavelmente acaba cansando o leitor (problema que apontei anteriormente na resenha de Veado Assassino). Depois de duzentas páginas desse tipo de falação, eu quase desisti da leitura.
A história acompanha o dia-a-dia desses cinco menó, numa pegada realista. Realista até demais, talvez, já que o assunto dominante é o uso de maconha. Enquanto tratam de seus empregos, romances, famílias, os personagens fumam maconha o tempo inteiro, acho que não tem uma única página do livro que não fale de maconha. A mãe de Washington e Wesley dá o papo reto: “— Você não toma jeito, né, Washington? Não tem um puto no bolso e só pensa em fumar essa merda.”
Para o meu gosto, o livro se ressente da falta de estrutura. Ele não está montado como um “romance” tradicional, e sim como um apanhado de dezenas de “cenas”. Não me agrada muito, mas é um jeito válido de fazer literatura. É uma crônica do cotidiano, sem grandes aventuras, sem “arcos” de transformação, sem dramas intensos, sem suspenses ou surpresas. Só cinco jovens brasileiros, favelados, vivendo sua vida, cheios de perrengues, contratempos, inseguranças, pequenas alegrias.
Eu não ficaria surpreso se virasse uma série de televisão.
Pela oralidade cansativa, uma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)
Decio, adorei os seus comentários e achei super pertinente. Sim, quando o autor exagera na oralidade local, fica cansativo. Já vi isso em outros livros. Muito bem colocado.
Muito legal, Décio. A machadada única me fez ir atrás do autor, e estou agora lendo O Sol na Cabeça, livro de contos, de 2018. Até agora estou achando acima da média. Geovani Martins é realmente muito talentoso. Achei que o livro estaria cheio de estereótipo barato, mas não chega a isso. Há os estéreotipos, mas são muito bem pensados, e a consciência narrativa dele é afiada, os contos todos bem amarradinhos. Também parece ter bastante capacidadade de penetração psicológica. Enfim, tô bastante feliz com essa descoberta, e fica aqui o meu agradecimento. Tô gostando muito da sua Substack. Descobri pela sua entrevista no Selmo. Sigo acompanhando. Um abraço.